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2012-07-31
Governo reforça meios financeiros dos núcleos de atendimento às vítimas de violência doméstica
Os dez núcleos de
atendimento às vítimas de violência doméstica vão receber verbas
provenientes dos jogos sociais, como o Totoloto ou o Euromilhões.
Em
declarações à TSF, a secretária de Estado da Igualdade lembrou que
ainda que tenha havido numa diminuição do número de queixas de violência
doméstica em relação a 2010, o número de 28980 queixas tem de ser
considerado uma «brutalidade».
«Estamos a falar de muitas mortes e
de um universo superior a 28 mil queixas», lembrou Teresa Morais, que
anunciou que decidiu pegar numa verba que vai receber este ano pela
primeira vez dos jogos sociais e dedicá-la a estas mulheres.
Esta
secretária de Estado indicou que vai atribuir 25 mil euros a cada uma
destas estruturas que «apoiam as vítimas de violência quando elas tomam a
decisão de abandonar a casa em que vivem com o agressor».
Ministério Público na reorganização judiciária: um alerta pertinente
Artigo de opinião de Rui Cardoso:
Um dos maiores pecados da reforma da organização judiciária de 2008 foi a
ausência de visão sobre o específico papel do Ministério Público (MP)
no funcionamento da Justiça e, assim, da forma como deve estar
organizado.
A actual reforma não pode repetir tal erro. Há
que definir um rumo e responder desde já a muitas questões: que funções
devem caber ao DCIAP e que recursos lhe devem ser alocados? Como se
organiza e coordena a investigação da grande criminalidade? Devem ser
instalados os Departamentos de Contencioso do Estado, com imediatas
repercussões nas áreas cível e administrativa? Devem ser criados
departamentos multidisciplinares para abordagem unitária de alguns
problemas complexos (urbanismo, ambiente, etc.)? Devem ser criadas
coordenações nacionais por jurisdições?
As
respostas a estas e muitas outras questões não poderão ficar para mais
tarde, no quadro de uma (prometida) revisão profunda do Estatuto do MP
sob pena de, nessa altura, se poder concluir que tudo aquilo que agora
se implementou está desadequado ou que já não estão disponíveis os
quadros de magistrados necessários a essa revisão. As bases desse
caminho têm de ficar definidas desde já.
"Os dados estatísticos que sustentam os valores processuais de
referência são insuficientes e estão desadequados com a realidade,
devendo por isso ser conformados de acordo as estatísticas mais recentes
de 2011 e de 2012", diz a ASJP, liderada por José Mouraz Lopes."
"Os juízes foram ontem avisar a ministra da Justiça que, se o mapa
judiciário for todo implementado em 2013, sem um plano faseado, dá-se "o
caos" nos tribunais e o sistema "pára". O alerta consta do parecer da
Associação Sindical dos Juízes (ASJP) à reorganização judiciária, que
Mouraz Lopes, presidente da associação, entregou ontem em mãos a Paula
Teixeira da Cruz.
(...)
As pendências no primeiro ano da reforma, dizem desde já os juízes,
vão "aumentar mais de 50%", em contraciclo com o objectivo do Governo e
da ‘troika'.
Por isso, os magistrados judiciais propuseram ontem à ministra que a
reforma tenha três passos: no primeiro ano, entra em vigor a Lei
Orgânica e o modelo de gestão dos tribunais e dá-se formação aos
juízes-presidentes dos tribunais; no segundo ano, regulamenta-se o
quadro de juízes e funcionários e inicia-se o modelo de redistribuição
de processos; e só no terceiro ano é que se efectiva o mapa de
competências com a instalação das novas comarcas. Embora o início da
reforma se mantenha em 2013, os juízes acabam por propor o adiamento da
instalação das novas 20 comarcas (base distrital)."
Segue uma transcrição parcial do estudo, no segmento referente à futura Comarca de Faro:
Comarca de Faro
1. Divisão territorial e área geográfica
A comarca de Faro resulta da agregação dos actuais círculos de Faro, Loulé e Portimão, não suscitando este agrupamento à partida quaisquer questões.
2. Especializações e estrutura da comarca
O documento em análise suscita algumas questões relacionadas com a localização das instâncias centrais e com a eleição dos municípios de Faro e Portimão para a instalação de quase todas. Ora não há nenhuma razão que justifique que em Loulé fique sedeada apenas uma das secções da instância central de execuções, sobretudo quando o Palácio da Justiça de Loulé reúne condições para albergar outras instâncias centrais, ficando subaproveitado com a distribuição de tribunais ensaiada no documento. Em contrapartida as instalações do edifício de Faro não são aptas a acolher todas as secções ali instaladas.
(...) Proposta: a) instalação, em Loulé, das secções criminal e de instrução criminal cuja sede está prevista para Faro.
3. Edifícios e Equipamentos
A propósito dos edifícios e equipamentos há algumas insuficiências a acautelar. Os Palácios da Justiça de Portimão e de Faro são insuficientes para o que neles se pretende instalar. Ao invés, outros edifícios ficarão subaproveitados, designadamente Silves e Loulé. Propôs-se já a mudança de secções centrais de Faro para Loulé. (...)
4. Quadros de recursos humanos
No que ao quadro de recursos humanos concerne há correcções a efectuar em algumas instâncias locais. (...)
Proposta: a) alargamento do quadro da secção de competência cível da instância local de Faro para 2 juízes sem afectação de qualquer juiz às pendências.
(...)
Proposta: a)o alargamento do quadro da secção de competência cível da instância local de Loulé para 2 juízes sem afectação de qualquer juiz às pendências.
Proposta: a) alargamento do quadro da secção de competência cível da instância local de Loulé para 2 juízes sem afectação de qualquer juiz às pendências. b) alargamento do quadro da secção de competência criminal da instância local de Loulé para 3 juízes sem afectação de qualquer juiz às pendências.
(...) Proposta: a) instalação de uma secção local de competência cível em Lagos, com o quadro de 1 juiz;
b) instalação de uma secção de competência criminal em Lagos, com o quadro de 1 juiz;
c) instalação de uma secção local de competência cível em Olhão, com o quadro de 1 juiz;
d) instalação de uma secção de competência criminal em Olhão, com o quadro de 1 juiz;
e) instalação de uma secção local de competência cível em Tavira, com o quadro de 1 juiz;
f) instalação de uma secção de competência criminal em Tavira, com o quadro de 1 juiz;
g) instalação de uma secção local de competência cível em Vila Real de Santo António, com o quadro de 1 juiz;
h) instalação de uma secção de competência criminal em Vila Real de Santo António, com o quadro de 1 juiz.
Prorrogação
do prazo de funcionamento da comissão parlamentar de inquérito ao
processo de nacionalização, gestão e alienação do Banco Português de
Negócios, S. A., e suspensão dos trabalhos durante o mês de agosto.
Retifica a Lei n.º 23/2012, de 25 de junho, «Procede à terceira alteração ao Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro», publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 121, de 25 de junho de 2012.
a) Declara a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, das normas constantes dos artigos 21.º e 25.º da Lei n.º 64-B/2011,
de 30 de dezembro (Orçamento do Estado para 2012).
b) Ao abrigo do
disposto no artigo 282.º, n.º 4, da Constituição da República
Portuguesa, determina-se que os efeitos desta declaração de
inconstitucionalidade não se apliquem à suspensão do pagamento dos
subsídios de férias e de Natal, ou quaisquer prestações correspondentes
aos 13.º e ou 14.º meses, relativos ao ano de 2012.
Estabelece os requisitos técnicos a que devem obedecer os centros de inspeção técnica de veículos (CITV), no âmbito da Lei n.º 11/2011, de 26 de abril.
O balanço efetuado esta manhã, às 7 horas, revelou que já arderam mais de vinte mil hectares de floresta na serra do concelho de Tavira (correspondente a cerca de um terço da área do concelho), sobretudo na freguesia de Cachopo.
O incêndio já alastrou para as freguesias de Santo Estêvão e Santa Catarina do mesmo concelho, tendo já penetrado, inclusivamente, na área do concelho de São Brás de Alportel.
O fogo encontra-se neste momento a avançar, também, na direção do concelho de Alcoutim e de Espanha, tendo chegado a progredir à velocidade de 10 quilómetros por hora.
No combate a este incêndio já se encontram mais de 700 homens e a proteção civil
accionou grupos de reforço de Beja, Évora, Setúbal, Aveiro, Leiria e Porto para apoiar as
operações de combate ao incêndio.
Ministério da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território
Aprova
o Regulamento do Regime de Apoio às Ações Coletivas Relativas à
Melhoria das Condições de Segurança a Bordo das Embarcações de Pesca, no
âmbito da Medida Ações Coletivas, do eixo prioritário n.º 3 do Programa
Operacional Pesca 2007-2013 (PROMAR).
GNR: militares em Loulé pernoitam em antigas celas sem condições
"Em declarações à Lusa, o coordenador da região Sul da
APG/GNR, refere como exemplo o facto de alguns militares do posto de
Loulé terem que pernoitar em antigas celas de uma prisão, que são muitas
vezes partilhadas por duas pessoas.
"Há
jovens que têm que partilhar as celas com outro camarada e sentem-se
vexados e até envergonhados", alertou António Barreira, acrescentando
que estas carências provocam um grande desgaste aos militares, gerando
também desmotivação.
Segundo aquele
responsável, são os jovens em início de carreira que mais sofrem com o
problema, pois têm salários mais baixos e a maioria não tem condições
para alugar uma casa, optando por isso por pernoitar no posto.
"Não
é admissível que se entenda que uma prisão não tem condições para
albergar presos há já cerca de 20 anos mas que o mesmo edifício, sem
quaisquer obras profundas de requalificação, sirva para pernoitarem
agentes da autoridade", critica."
Estabelece
o regime de proteção jurídica a que ficam sujeitos os símbolos
olímpicos e reforça os mecanismos de combate a qualquer forma de
aproveitamento ilícito dos benefícios decorrentes do uso dos mesmos,
revogando o Decreto-Lei n.º 1/82, de 4 de janeiro.
Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais
Cessação
da comissão permanente de serviço, na jurisdição administrativa e
fiscal, da juíza de direito Deolinda da Conceição Ramos Caeiro Freitas
Pinto.
São
cada vez mais as pessoas (...) que não têm capacidade para
pagar o que devem, indica a lista pública de devedores crónicos, gerida
pelo Ministério da Justiça.
O número de novos devedores, nos primeiros seis meses deste ano, duplicou em relação ao último semestre do ano passado.
As dívidas incobráveis atingem um valor aproximado a 400 milhões de euros.
Sem
embargo de convenção em contrário, há direito de regresso entre os
avalistas do mesmo avalizado numa livrança, o qual segue o regime
previsto para as obrigações solidárias.
Regula
as diretivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de
testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde e cria
o Registo Nacional do Testamento Vital (RENTEV).
Procede à primeira alteração à Lei n.º 37/2011,
de 22 de junho, que simplifica os procedimentos aplicáveis à
transmissão e à circulação de produtos relacionados com a defesa,
transpondo a Diretiva n.º 2012/10/UE, da Comissão, de 22 de março de 2012.
"Em entrevista ao jornal Público, o economista e consultor do governo
para as privatizações, renegociação das PPP e reestruturação da banca" (António Borges),
"deixa críticas à decisão do Tribunal Constitucional (TC), que declarou a
inconstitucionalidade dos cortes dos subsídios aos funcionários do
sector público e aposentados. Para António Borges trata-se de uma
decisão que "terá consequências económicas de uma gravidade extrema", em
particular, "para a margem de manobra com que este governo, ou outro,
ficará para no futuro fazer certas correcções". "E podemos
interrogar-nos se é o que mais interessa ao país", acrescenta."
As tomadas de posição públicas de pessoas ligadas ao poder político, relativas a decisões judiciais, têm revelado alguma incultura preocupante em matérias estruturantes do estado de direito democrático.
Enquanto os tribunais decidem com base em critérios de legalidade estrita - com base em leis aprovadas e promulgadas pelos órgãos de soberania integrados pelos agentes políticos -, muitos políticos parecem acreditar que os juízes se limitam a decidir com base em critérios extra-jurídicos, de oportunidade ou cariz político.
Sobre esta matéria, chama-se a atenção para o oportuno artigo de opinião do Vice-Presidente da Relação de Lisboa, Desembargador Dr. José Maria Sousa Pinto, publicado aqui, em que escreveu"Concorde-se ou não com a sua fundamentação, o acórdão surge como sinal
de esperança. Qualquer memorando de entendimento tem de obedecer a
princípios inerentes a um Estado de Direito Democrático – que por isso
têm consagração constitucional –, sendo que o facto de nos encontrarmos
numa situação crítica não significa que não tenham de ser respeitados.(...)"
Muitos - nem só os políticos - parecem preferir a segurança económica à segurança jurídica - quando esta constitui uma condição sine qua non para a primeira -.
Mais uma vez, a descredibilização das decisões dos tribunais, por agentes políticos, induz prejuízo para a consolidação do estado de direito democrático, contribuindo para a degradação da sua imagem.
A fragilidade do estado de direito português, com a permissividade das leis com o fenómeno da corrupção, a quase total irresponsabilidade (legal) dos decisores políticos em relação a contratações públicas ruinosas para o erário público (PPPs, et alia...) e a desadequação dos meios (sobretudo processuais, materiais e organizacionais) postos ao serviço da Justiça - pelos políticos - é que tem gerado consequências económicas de uma gravidade extrema.
Será que isso motivará as correções que se impõem?
As resistências políticas, não obstante algumas iniciativas legislativas promissoras - umas goradas e outras em vias de se gorarem - têm sido suficientes para intuir uma resposta negativa.
Ministérios das Finanças e da Economia e do Emprego
Primeira alteração à Portaria n.º 1033-A/2010,
de 6 de outubro, que estabelece um regime de discriminação positiva
para as populações e empresas locais, com a aplicação de um sistema
misto de isenções e de descontos nas taxas de portagem nas autoestradas
sem custos para o utilizador (SCUT) do Norte Litoral, do Grande Porto e
da Costa de Prata.
Procede à primeira alteração ao Decreto-Lei n.º 112/2011,
de 29 de novembro, que aprova o regime da formação do preço dos
medicamentos sujeitos a receita médica e dos medicamentos não sujeitos a
receita médica comparticipados.
Dá-se conhecimento do Movimento Judicial Ordinário de Julho de 2012 para os Tribunais da Relação e Primeira Instância, na sua versão definitiva aprovada.
Teatro: Vítor Correia interpretou "Tabacaria" de Álvaro de Campos
VIII edição do Festival Internacional de Teatro e Artes na Rua
de Tavira - “Cenas na Rua”.
Performance poética “Tabacaria” pela Armação do Artista (9 de Julho, às 22 horas, em Tavira)
Datado
de 1928, o poema “tabacaria” tem como tema a dimensão da solidão
interior.
Um texto de rara beleza
emocional que Vítor Correia interpretou de forma magistral, envolvido por diferentes ambientes
sonoros.
Tabacaria
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.
Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, in "Poemas"
(Tabacaria enquadra-se na terceira fase poética
de Álvaro de Campos, a fase, "intimista", onde mergulha nas
profundezas da angústia e do pessimismo. O autor retorna ao tema do cansaço,
da inquietação diante do incompreensível.
Ricardo Reis, outro heterónimo de Fernando Pessoa, num apontamento
no livro O Eu profundo e outros eus teceu as seguintes considerações:
"O que verdadeiramente Campos faz, quando escreve em verso, é
escrever prosa ritmada com pausas maiores marcadas em certos pontos, para fins
rítmicos, e esses pontos determina-os ele pelos fins dos versos."
Nos primeiros versos (Não sou nada/ Nunca serei nada./ Não
posso querer ser nada), já se percebe a descrença presente
em relação a si mesmo e ao longo do poema em relação
a tudo. O Eu-poético sabe que só o que possui são sonhos: "(...) tenho em mim todos os sonhos do mundo.(...).)