«Mergulhados numa
crise estrutural a que não estávamos habituados e de que não tínhamos
memória sequer - porque essa memória havia findado com a geração dos
nossos pais, avós e bisavós - herdeiros diretos da riqueza, coesão
social e pleno emprego de um estado social que não era apanágio de um
país, mas, sim, de uma civilização, vemo-nos confrontados de repente com
a incerteza do futuro e com a presença do outro;
outro que são todos aqueles que não nos pertencem, que mais não são
senão países emergentes que relativizam a nossa antiga riqueza, que
integram civilizações diferentes aparentemente adormecidas durante muito
tempo e que, lentamente, ressurgiram.
A
época em que William Beveridge moldou, no seu célebre relatório, o
esqueleto do estado-providência britânico surge-nos como uma antiga
fotografia de família cuja veracidade começa a ser uma interrogação.
Daí
que dialogar, hoje e aqui - não apenas sobre os Tribunais e o Poder
Judicial, mas também sobre os juízes, o que os espera, o que os cidadãos
poderão esperar, as angustias para o jantar que cada um de nós poderá
eventualmente digerir ou superar - seja o momento aprazado de reflexão
que se impõe e justifica.
Há, a nosso ver, pressupostos que convém referir logo à partida.
O
primeiro reporta-se a reformas estruturais do Poder Judicial,
reconfigurando-o, sob pena de regressarmos à sentença do Príncipe de
Salinas, mudando alguma coisa para que tudo continue na mesma.
O
mapa judiciário do país (cujo esqueleto tem mais de século e meio) com
comarcas desfasadas da carga processual distribuída, da expressão
demográfica que servem, da rede viária entretanto implementada, dos
meios tecnológicos de comunicação à distância, tem que ser profundamente
remodelado sem prejuízo de uma monitorização permanente de modo a
corrigir de imediato as distorções que qualquer experiência nova traz
consigo, quase necessariamente.
É
óbvio que há desfasamentos regionais que um novo mapa judiciário pode
agravar ou aprofundar; mas a verdadeira causa desses desfasamentos passa
por políticas gerais da estrutura de distribuição de dinheiros
(nomeadamente comunitários), recursos e centros decisórios pelas várias
províncias ou regiões que nada têm que ver com o desenho de um mapa.
Não
é uma rede de comarcas que pode desenvolver territórios abandonados ou
ostracizados mas, sim, uma política económica equilibrada e coerente que
arraste consigo a rede de serviços públicos essenciais.
Reformular,
por outro lado, a fluidez dos vários processos (seja qual for o seu
ramo jurídico), criar verdadeiros tribunais de paz complementares dos
comuns e inseridos na mesma estrutura unitária, ter a coragem de fazer
exatamente o mesmo em relação à orgânica administrativa com um só
Conselho e um só Supremo Tribunal (única solução que permite a gestão
global de todos os juízes e que evita a perplexidade do cidadão quando
confrontado com jurisprudências uniformizadas ou firmadas diferentes
sobre os mesmos assuntos), fiscalizar os agentes de execução através de
um organismo estatal não corporativo para que o processo executivo não
seja um feudo sem
controlo, refazer a proporção juiz/magistrado do MP que na Europa
desenvolvida atinge a ratio de 3/1 ou 4/1 quando em Portugal anda perto
da paridade numa distorção injustificável que leva ao desperdício de
recursos, são alguns dos pressupostos essenciais para a refundação do
Judiciário.
Colegas
Um
dos problemas maiores que o futuro poderá reservar às magistraturas é o
da possível degradação estatutária que se refletirá necessariamente na
qualidade da função que desempenham com a deserção de muitos e bons e
com o prejuízo subsequente do cidadão.
E
tal degradação pode assumir paletas variadas: desde a neutralização da
jubilação até à concorrência interna entre os próprios magistrados, ao
atual sistema de formação, á progressão na carreira, pacotes estes que
se tornam particularmente patentes no modelo de graduação para acesso
aos tribunais superiores.
A
jubilação existe para perpetuar um dos pressupostos essenciais da
imparcialidade e independência do juiz: a sua total exclusividade com
uma carga proibitiva tal que dificilmente existirá noutra função.
Tal
objetivo - aliado à titularidade do exercício de uma função soberana do
estado - terá que moldar não só o estatuto remuneratório como a
jubilação dos magistrados; daí que o facto de, nos últimos 5 anos, ter
havido três tentativas de esvaziamento do conteúdo da jubilação tenha o
sabor amargo de um ciclo ainda por fechar.
A
concorrência entre juízes, com uma expressão nova nos finais dos anos
80 do século passado, abriu a porta a um lento individualismo que põe em
primeiro lugar a rápida ascensão na carreira, importando para os
Tribunais (pela primeira vez) uma visão neoliberal do sistema, com
vários defeitos e poucas virtudes.
Tudo se precipitou com as alterações legislativas de 1988.
Faz
sentido que o mérito seja o critério preferencial na progressão da
carreira; já não faz sentido que o seja logo no início da profissão, à
saída do CEJ, com um, dois, três anos de exercício de função, quando a
personalidade profissional do julgador ainda está em formação.
Ou
seja, faz sentido que o mérito seja o critério de progressão quando o
juiz tem perto de uma década de carreira (e tanto assim que esse é o
tempo legal exigido para se ser juiz de círculo) mas não faz sentido que
ele seja critério de preferência nas meras transferências anuais de
juízes antes de se perfazer esse limite temporal mínimo, ressalvados
obviamente os casos em que o juiz não atingiu sequer o patamar da
classificação - padrão definido por lei (ou seja, o bom).
Quantos juízes da minha geração se pronunciaram à época, e em vão, contra esta opção legislativa.
O
que dela resultou foi o início lento - que o tempo potenciou - de uma
guerra larvar entre as gerações mais novas de magistrados, porque era
sempre possível aproveitar, com sorte, o desfasamento temporal das
inspeções, saindo beneficiados os menos antigos em prejuízo dos mais
antigos, sem que o mérito tivesse absolutamente nada a ver com isso.
A
sedimentação deste modelo traiçoeiro, associado a uma cada vez maior
visão neoliberal da progressão na carreira, expressa na regra "cada um
trate de si", fez o seu caminho (principalmente nos grandes centros
urbanos) e veio a projetar-se nos itens seguintes, ou seja, na formação
contínua dos juízes e nas graduações de acesso aos Tribunais Superiores.
A formação contínua sofreu um retrocesso com a extinção dos julgamentos em Coletivo que, hoje, só subsistem no crime grave.
Era aí que havia a troca igualitária de posições, experiências e opiniões que moldavam a personalidade do julgador experiente.
Nos
países europeus do centro, é frequente (tanto quanto julgo saber) a
troca de experiências e de juízes em países de acolhimento para se
perceber como funciona o seu Judiciário, quais as suas dificuldades e
vantagens, obtendo uma visão alargada dos Tribunais.
Em
Junho passado, uma juíza referendária da Cour de Cassation francesa
esteve dez dias no nosso STJ elencando aquilo que de positivo o nosso
modelo tinha para o publicitar em França; dos diversos pontos elencados a
sua maior surpresa foi a de Portugal recusar um sistema de cassação e
acolher um recurso de revista ou substituição que ela descobriu permitir
uma grande rapidez decisória.
O
mesmo sucede na Alemanha: alguns juízes portugueses foram já convidados
a ir à escola de formação contínua dos juízes alemães em Wustrau (eu
próprio intervim aí, em Maio /2009) para uma troca pluralista acerca dos
modelos judiciários europeus.
Pouco
disto se faz em Portugal; faz-se, ao invés, uma formação contínua cada
vez mais teórico/académica, centrada essencialmente no litoral
urbanizado e na área metropolitana de Lisboa, com os juízes a procurar
mestrados e doutoramentos sobre um tema específico que, por ser
específico, dá uma visão limitada da abrangência que tem a teoria geral
do direito.
Com
uma formação contínua assim, a esmagadora maioria dos juízes chegará à
2.ª instância sem ter uma única experiência de trabalho em conjunto, de
julgamento em coletivo, confrontando decisões e os juízos de valor que
as suportam.
Pior
ainda: no futuro, a tendência crescente poderá ser para a formação
académica centrada em doutoramentos destinados à progressão profissional
o que nos leva a uma conclusão preocupante: a formação dos juízes
servirá para financiar à sua custa as faculdades de direito numa época
em que a crise económica do ocidente põe em xeque o financiamento
universitário público e a subsistência do privado.
Mas
se a formação contínua dos juízes pode enveredar pela senda de um
vulgar financiamento do ensino académico, o sistema atual de nomeação de
juristas de mérito para os Supremos Tribunais perfila-se como um escape
para resolver o excesso de doutorados - não catedráticos nas faculdades
de Direito, bloqueando a progressão normal da carreira do juiz.
Hoje,
nenhum magistrado (seja juiz, seja do MP) pode aspirar a concorrer a
juiz do STJ com menos de 30 e tal anos de serviço e 60 anos de idade; ao
invés, o jurista de mérito pode-o fazer com 20 anos de profissão e
45/47 anos de idade, ao contrário do que os legisladores portugueses
sabiamente estabeleceram no estatuto de 1977.
O
que daqui advêm é mais que previsível: não dá lucro ser magistrado de
carreira; dá lucro ser jurista de mérito com um doutoramento feito no
país ou fora dele, sabendo-se (como se sabe) que nem todas as faculdades
são comparáveis em qualidade, apesar de ninguém dizer isso com medo de
ser apodado de racismo cultural.
Jurista
de mérito trabalhará no STJ, por isso mesmo, mais de 20 anos; juiz de
carreira e MP - sexagenários ao chegarem lá - permanecerão nele 2/3/4
anos, jubilando-se a seguir (porque já estão cheios de trabalhar) e
abrindo vaga para uma nova quota dos juristas de mérito.
Dentro
de 10/20 anos, os juristas dominarão percentualmente os Supremos
Tribunais - apesar de não terem qualquer experiência em julgar -
tornando-se os Usain Bolt dos tempos modernos, enquanto os magistrados
verão a sua carreira profissional crescentemente paralisada.
Sabe-se
que os quadros do nosso sistema universitário não têm lugar para todos;
daí que o modelo legal do jurista de mérito (tal como está configurado)
seja a solução para absorver esse excesso de académicos à custa dos
plebeus anónimos que (segundo o estudo de Nuno Garoupa) têm trazido às
costas os Tribunais portugueses.
Julgar
de direito não é um exercício teórico puro como se pode pensar; julgar
pressupõe o pragmatismo que a experiência confere em valorar e definir o
facto, realizando o direito naquilo que tem de sábio e nuclear: o
equilíbrio das prestações.
Grande
parte dos problemas referidos projeta-se no sistema de graduação de
acesso aos Tribunais Superiores; daí as críticas frequentes ao modelo,
potenciadas pelo facto de na graduação se jogar com toda a vida
profissional do magistrado.
As
alterações legislativas de 2008 introduziram uma filosofia nova nas
graduações que rompeu com o relativo equilíbrio que o CSM foi
conseguindo e aperfeiçoando desde 1986 limando arestas e introduzindo
pequenas correções que a experiência justificava; mas atenção, porque
muitas das inflexões de critérios ocorridas nas graduações não têm que
ver com a lei mas com o contrato concursal que o CSM define.
Não
culpemos, por isso, apenas o legislador; culpemos também a inversão de
itens valorativos que advém da nova mentalidade concorrencial que se
instalou insidiosamente entre quem pretende trepar rapidamente na
carreira, seja na carreira ortodoxa comum, seja na heterodoxa como,
aliás, ficou recentemente demonstrado com magistrados judiciais.
Dividiria,
por isso, os problemas das graduações em dois capítulos: os que
resultam da lei e os que resultam de critérios do CSM.
E fá-lo-ei muito sucintamente porque o tempo não dá para mais.
A lei coloca quatro questões que urge resolver: deve equiparar o tempo profissional de todos
(repito, de todos) os concorrentes, magistrados ou não, pelos motivos
acima referidos; deve conferir ao CSM o poder de especificar quais os
concorrentes (magistrados ou não) com mérito para aceder ao Tribunal
superior devendo o concurso ter o prazo de validade correspondente à
nomeação do último; deve extinguir o júri consultivo externo que
corresponde, de facto, a afastar o CSM do processo global da graduação
(seja para o STJ seja para a 2.ª instância) pondo em causa a regra
constitucional da competência exclusiva do Conselho; e deve,
provavelmente, alterar o sistema de distribuição de quotas de acesso ao
STJ ou a filosofia da sua definição.
Expliquemo-nos melhor quanto aos dois últimos pontos que são os menos compreensíveis.
O
júri consultivo deve ser interno, composto por vogais do CSM e por este
escolhidos, destinado a uniformizar os critérios de apreciação dos
trabalhos dos concorrentes avaliados por todos os vogais.
Era
isto, aliás, o que o Conselho já fazia na prática desde a década
passada; com isto empenhava-se o Conselho inteiro na graduação, havendo
um grupo menor encarregado de convergir critérios que o Plenário
aprovava ou não.
Mas as próprias quotas de acesso ao STJ devem ser repensadas.
Sendo
o Supremo o patamar final de acesso de carreira do juiz aberto, também,
a magistrados do MP e a juristas de mérito, só vemos duas hipóteses
possíveis: ou os juízes podem concorrer ao Supremo integrados também na
quota dos juristas de mérito; ou a quota destes juristas (uma vaga em
cada cinco) deve abranger ainda o MP, sendo as restantes quatro
distribuídas por juízes.
A
primeira hipótese não nos agrada de todo porque potencia distorções
que, acima, referimos, nomeadamente exacerbando a concorrência e a
mentalidade neoliberal dos juízes; resta-nos a segunda como sendo a mais
equilibrada e aceitável.
Mas
o CSM - ele próprio - deve igualmente infletir os seus critérios em
três pontos que estão exclusivamente na sua mão: em primeiro lugar, deve
atender mais ao mérito do trabalho profissional e menos aos itens
curriculares (sob pena de os melhores serem ultrapassados pelos menos
bons) o que impõe que se alargue o leque de valoração da qualidade
desses trabalhos para que a distância seja suficientemente grande de
modo a não inquinar o mérito em detrimento de itens que são, por vezes,
meros placebos; em segundo lugar, o número de trabalhos que os
concorrentes podem apresentar tem que ser infinitamente maior do que
atualmente; em terceiro lugar, a graduação não pode ser feita por um
total aritmético, quantas vezes em foto-finish, mas, sim, por grupos que
exprimam diferenças palpáveis e não diferenças milimétricas reduzidas a
valores de uma ou duas décimas que refletem um mero subjetivismo
decisório.
Senhora Ministra da Justiça
Senhor Diretor do CEJ
Senhor Desembargador Araújo de Barros
Caros Colegas
Num
trabalho recente sobre os tribunais, (datado de 2006) Nuno Garoupa
concluía que entre 1960 e 2002 (ou seja, num período de 42 anos), cada
juiz por 100.000 habitantes tinha uma taxa de produtividade positiva em
processos findos por 1000 habitantes de 5,2, enquanto cada advogado
tinha uma taxa positiva de 0,32 e cada funcionário uma taxa de
produtividade negativa de 1,2.
No
último Encontro do CSM, em Espinho, confrontado por nós com esse
estudo, Nuno Garoupa concordou com a conclusão evidente: os juízes têm
trazido os Tribunais portugueses às suas costas.
Não se mate, por isso, a galinha dos ovos de ouro.»
(Discurso proferido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no colóquio organizado no Centro de Estudos Judiciários pelo Fórum Justiça Independente, em 14 de Setembro de 2012, cujo texto foi obtido aqui).
(Nota: destaques da responsabilidade do Blog de Informação)