Processo n.º
1297/2013
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
(...)
Como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o
julgamento através do tribunal singular oferece ao arguido menores garantias do
que um julgamento em tribunal coletivo, porque aumenta a margem de erro na
apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa (entre
outros, os acórdãos n.ºs 393/89 e 326/90). É desde logo a maior abertura que a
intervenção de órgão colegial naturalmente propicia à ponderação e discussão de
aspetos jurídicos e de análise da prova que permite potenciar uma maior
qualidade de decisão por confronto com aquelas outras situações em que haja
lugar ao julgamento por juiz singular.
Daí que a opção legislativa pelo julgamento sumário
deva ficar sempre limitada pelo poder condenatório do juiz definido em função
de um critério quantitativo da pena aplicar, só assim se aceitando – como a
jurisprudência constitucional tem também sublinhado – que não possa falar-se,
nesse caso, numa restrição intolerável às garantias de defesa do arguido.
Acresce que a prova direta do crime em consequência da
ocorrência de flagrante delito, ainda que facilite a demonstração dos factos
juridicamente relevantes para a existência do crime e a punibilidade do
arguido, poderá não afastar a complexidade factual relativamente a aspetos que
relevam para a determinação e medida da pena ou a sua atenuação especial,
mormente quando respeitem à personalidade do agente, à motivação do crime e a
circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto que possam diminuir de forma
acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente.
E estando em causa uma forma de criminalidade grave a
que possa corresponder a mais elevada moldura penal, nada justifica que a
situação de flagrante delito possa implicar, por si, um agravamento do estatuto
processual do arguido com a consequente limitação dos direitos de defesa e a
sujeição a uma forma de processo que envolva menores garantias de uma decisão
justa.
Como se deixou entrever, o princípio da celeridade
processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as
garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32º,
n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo
sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos
detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável.
Não subsiste motivo para que, em caso de flagrante
delito, o recurso ao processo sumário se não mantenha dentro do limite abstrato
máximo de competência do juiz singular quando intervenha em processo comum.
Ainda que não haja obstáculo a que o âmbito de aplicação do processo sumário se
estenda aos casos em que a pena a aplicar em concreto não deva ultrapassar os
cinco anos por via do funcionamento de um mecanismo equivalente ao previsto no
artigo 16º, n.º 3, do CPP, que o Tribunal considerou já não ser
inconstitucional (acórdão n.º 296/90).
O legislador estabeleceu a repartição de competência
entre o tribunal singular e o tribunal coletivo em processo comum em função da
gravidade do crime imputado, não apenas por referência à tipologia do crime,
mas também ao desvalor do resultado e à gravidade da moldura penal prevista -
artigos 14º e 16º do CPP (quanto a este específico objetivo cfr. artigo 2º, n.º
1, alínea 57, da autorização legislativa que originou o CPP). E nada justifica,
em face de todas as anteriores considerações, que esse mesmo critério
valorativo não tenha aplicação quando haja lugar ao julgamento em processo
sumário.
A solução legal mostra-se, por isso, violadora das
garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32º, n.ºs 1 e 2,
da Constituição.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se declarar a
inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381º,
n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de
21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto
é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a
cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.
Sem custas.
Lisboa, 18 de fevereiro de 2014.
– Carlos Fernandes Cadilha – Maria de Fátima
Mata-Mouros – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura
Mariano – Maria José Rangel de Mesquita – Pedro Machete – Ana Guerra Martins –
Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – José da Cunha Barbosa – Maria João
Antunes (vencida, de acordo com a declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro (Não considero
que o uso do processo sumário, para julgamento de crimes cuja pena máxima abstractamente
aplicável seja superior a cinco anos de prisão, contenda, de forma
constitucionalmente censurável, com as garantias de defesa do arguido,
considerando a configuração actual daquela forma de processo e, sobrevindo, a
salvaguarda disposta pelo artº 390º, nº 1, al. c) do CPP. O que é
constitucionalmente desconforme é que alguém possa ser condenado, em Tribunal
singular, a mais de cinco anos de prisão).
DECLARAÇÃO DE VOTO
Votei
no sentido da não declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, da norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação
introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo
a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima
abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, pelas razões que, de
seguida, exponho:
1.
Entendo que a tramitação vigente do processo sumário assegura o julgamento do
arguido no mais curto prazo possível compatível com as garantias de defesa
(artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição), harmonizando as finalidades que são
apontadas ao processo penal de um Estado de direto democrático: a descoberta da
verdade material e a realização da justiça, a proteção dos direitos dos
cidadãos e o restabelecimento da paz jurídica comunitária e da paz jurídica do
arguido, postas em causa com a prática do crime. Sem prejuízo de entender, no
plano do direito infraconstitucional, que há outros pontos de harmonização
político-criminalmente mais corretos, nomeadamente por assegurarem uma maior
coerência sistemática, e de considerar que tem havido uma descaracterização
censurável do processo sumário, podendo mesmo equacionar-se a sua transformação
numa forma simplificada do processo comum.
Diferentemente da tramitação prevista na versão primitiva do Código de Processo
Penal (CPP), o direito vigente autonomiza uma fase pré-judicial (artigos 382.º
e 384.º) e alarga, de forma evidente, os atos e os termos do julgamento
(artigos 387.º, 389.º e 389.º-A do CPP).
A
fase anterior ao julgamento em processo sumário contempla a possibilidade de o
arguido requerer, desde logo, prazo para a preparação da sua defesa, não
superior a 15 dias (artigos 382.º, n.ºs 3 e 5, 383.º, n.º 2, e 387.º, n.º 2,
alínea c), do CPP), bem como a
possibilidade de o Ministério Público ordenar diligências de prova essenciais à
descoberta da verdade, o que é especialmente relevante, do ponto de vista das
garantias de defesa, numa estrutura processual penal onde esta magistratura não
tem o estatuto de parte processual (cf. artigos 382.º, n.ºs 4 e 5, e 387.º, n.º
2, alínea c), do CPP e, ainda,
artigos 219.º da Constituição e 53.º do CPP). Na fase de julgamento, à extensão
do âmbito do processo sumário correspondem soluções diferentes das previstas
para os casos de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos (ou em
caso de concurso de infrações cujo limite máximo não seja superior a 5 anos): o
prazo máximo previsto para a produção de toda a prova eleva-se para 90 dias a
contar da detenção, podendo, excecionalmente, por razões devidamente
fundamentadas, designadamente por falta de algum exame ou relatório pericial,
ir até 120 dias a contar da detenção (artigo 387.º, n.º 10, do CPP); o
Ministério Público não pode substituir a apresentação da acusação pela leitura
do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção (artigo 389.º,
n.º 1, do CPP), o que, juntamento com o previsto no já referido artigo 382.º,
n.º 4, é uma manifestação clara do princípio da acusação e, consequentemente,
da estrutura acusatória do processo (cf. artigo 32.º, n.º 5, primeira parte, da
Constituição). Além de que o juiz elabora a sentença por escrito e procede à
sua leitura, se for aplicada pena privativa da liberdade, o que tem também a
ver com a possibilidade de o crime ser punível com pena de prisão superior a
cinco anos, face ao limite legalmente estabelecido para a substituição da pena
de prisão (artigo 389.º-A, n.º 5, do CPP).
Por
outro lado, a audiência de julgamento está subordinada ao princípio do contraditório (entre outros,
artigos 386.º, n.º 1, 387.º, n.ºs 4 e 6, 389.º, n.º 6, do CPP); não valem quaisquer provas que não tiverem sido
produzidas ou examinadas em audiência, para o efeito de formação da
convicção do tribunal (artigo 386.º, n.º 1, e 355.º, n.º 1, do CPP); o tribunal
pode sempre ordenar,
oficiosamente ou a requerimento (nomeadamente
do arguido), a produção de todos os meios de
prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à
boa decisão da causa (artigos 340.º, n.º 1, por força do artigo
386.º, n.º 1, e 387.º, n.ºs 4 e 7, do CPP); o processo
é reenviado para a forma comum quando não tenha sido possível, por
razões devidamente justificadas, a realização das diligências de prova
necessárias à descoberta da verdade no prazo previsto no n.º 10 do artigo 387.º
do CPP (artigo 390.º, n.º 1, alínea c),
do CPP); regulando-se o julgamento em processo sumário pelas disposições do CPP
relativas ao julgamento em processo comum, poderá sempre haver a reabertura da audiência para a determinação da sanção
(artigos 371.º e 386.º do CPP); o arguido tem, nos termos gerais, o direito ao duplo grau de recurso,
conhecendo a relação de facto e de direito, sempre que este tribunal confirme
decisão de 1.ª instância que aplique pena de prisão superior a 8 anos, de
acordo com os artigos 400.º, n.º 1, alínea f),
427.º, 428.º e 432.º do CPP (do ponto de vista jurídico-constitucional já é,
porém, censurável a limitação decorrente da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do mesmo Código).
2.
Entendo que as garantias de defesa do arguido não são necessariamente
desrespeitadas por o julgamento caber ao tribunal singular. Ponto é que o
processo criminal, globalmente considerado, assegure todas as garantias de defesa.
No
plano do direito infraconstitucional, o critério da atribuição de competência
aos tribunais de júri, coletivo e singular não assenta exclusivamente na
gravidade da pena aplicável ao crime (artigos 13.º. 14.º e 16.º do CPP). A
competência para julgar é atribuída (e foi sempre atribuída) por referência à
pena abstratamente aplicável, à natureza dos crimes ou à maior ou menor facilidade
de apreciação e valoração da prova por parte do tribunal. No que se refere ao
tribunal singular, ao qual é também deferida competência residual, compete-lhe
julgar os processos que respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstratamente
aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão (alínea b) do n.º 2 do artigo 16.º). E, ainda, uma
vez que a formação da convicção do tribunal está aí especialmente facilitada:
os processos que respeitarem aos crimes
contra a autoridade pública (alínea
a) do n.º 1 do artigo 16.º),
daqui resultando que o limite abstrato máximo da competência do juiz singular
em processo comum não corresponde propriamente a cinco anos de prisão (cf.
artigos 347.º, n.º 2, 350.º, n.º 1, 354.º e 355.º do Código Penal); e os que
devam ser julgados em processo sumário por ter havido detenção em flagrante delito por autoridade judiciária ou entidade policial ou por outra pessoa que
entregou o detido, em prazo curto, a autoridade
judiciária ou entidade policial
(alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º).
Com a salvaguarda de esta forma de processo não se aplicar aos detidos em
flagrante delito por crime que se inscreva na criminalidade
altamente organizada, por crime contra a identidade cultural e a
integridade pessoal, por crime contra a segurança do Estado ou por crime
previsto na Lei Penal Relativa às Violações de Direito Internacional
Humanitário (artigo 381.º, n.º 2, do CPP), valendo aqui, além de razões
estritamente atinentes à determinação da competência do tribunal de júri
(artigo 13.º, n.º 1, do CPP), o entendimento de que a natureza da criminalidade
em presença anula ou diminui, do ponto de vista da valoração da prova, as
vantagens associadas à detenção em flagrante delito. Independentemente, pois,
da gravidada da pena abstratamente aplicável ao crime (a alguns dos crimes
corresponde pena de prisão até 5 anos. Cf., por exemplo, artigos 160.º, n.ºs 4,
5 e 6, e 335.º do Código Penal).
No
plano do direito constitucional não decorre um qualquer critério de atribuição
de competência ao tribunal singular, ao tribunal coletivo ou ao tribunal de
júri, decorrendo somente do artigo 207.º, n.º 1, da Constituição que o júri intervém no julgamento dos crimes graves, salvo
os de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada. E da
jurisprudência anterior deste Tribunal não resulta propriamente o afastamento
do julgamento por tribunal singular em função da pena máxima abstratamente
aplicável ao crime. A questão é deixada em aberto, nomeadamente nos Acórdãos
n.ºs 393/89 e 550/98, lendo-se até, na declaração de voto aposta pelo
Conselheiro Luís Nunes de Almeida à primeira decisão, que partilha «o
entendimento de que o “julgamento pelo tribunal singular (em vez de o ser pelo
tribunal coletivo) não importa uma diminuição das garantias de defesa tal que
deva ser havida constitucionalmente ilegítima”» (decisões disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).
A propósito da discussão doutrinal e jurisprudencial que então teve lugar a
propósito do n.º 3 do artigo 16.º do CPP, Figueiredo
Dias defendeu que «não há rigorosamente nada na Constituição» que impeça
a aplicação pelo tribunal singular de uma pena de prisão em medida superior à
pré-determinada pelo Ministério Público. Isto é, superior à pena máxima que então
limitava o julgamento pelo tribunal singular, segundo o critério da gravidade
abstrata da pena aplicável ao crime – 3 anos de prisão, aos quais correspondem
hoje 5 anos (“Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código
de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 20).
Diga-se,
por último, que relativamente a crimes puníveis com pena de prisão superior a 8
anos, o arguido ou Ministério Público, que o poderá fazer em nome dos
interesses da defesa, poderão requerer a intervenção do tribunal de júri, nos
termos previstos no artigo 390.º, n.º 1, alínea b), do CPP, sendo os autos reenviados para processo comum. O
tribunal de júri é o único, relembre-se, ao qual a Constituição defere
competência para o julgamento de crimes graves, quando a defesa ou a acusação o
requeiram.