2014-02-28

 

Acórdão do Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral:






Processo n.º 1297/2013
3ª Secção
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha


Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:

(...)

Como o Tribunal Constitucional tem reconhecido, o julgamento através do tribunal singular oferece ao arguido menores garantias do que um julgamento em tribunal coletivo, porque aumenta a margem de erro na apreciação dos factos e a possibilidade de uma decisão menos justa (entre outros, os acórdãos n.ºs 393/89 e 326/90). É desde logo a maior abertura que a intervenção de órgão colegial naturalmente propicia à ponderação e discussão de aspetos jurídicos e de análise da prova que permite potenciar uma maior qualidade de decisão por confronto com aquelas outras situações em que haja lugar ao julgamento por juiz singular.
 
Daí que a opção legislativa pelo julgamento sumário deva ficar sempre limitada pelo poder condenatório do juiz definido em função de um critério quantitativo da pena aplicar, só assim se aceitando – como a jurisprudência constitucional tem também sublinhado – que não possa falar-se, nesse caso, numa restrição intolerável às garantias de defesa do arguido.

Acresce que a prova direta do crime em consequência da ocorrência de flagrante delito, ainda que facilite a demonstração dos factos juridicamente relevantes para a existência do crime e a punibilidade do arguido, poderá não afastar a complexidade factual relativamente a aspetos que relevam para a determinação e medida da pena ou a sua atenuação especial, mormente quando respeitem à personalidade do agente, à motivação do crime e a circunstâncias anteriores ou posteriores ao facto que possam diminuir de forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente. 

E estando em causa uma forma de criminalidade grave a que possa corresponder a mais elevada moldura penal, nada justifica que a situação de flagrante delito possa implicar, por si, um agravamento do estatuto processual do arguido com a consequente limitação dos direitos de defesa e a sujeição a uma forma de processo que envolva menores garantias de uma decisão justa.

Como se deixou entrever, o princípio da celeridade processual não é um valor absoluto e carece de ser compatibilizado com as garantias de defesa do arguido. À luz do princípio consignado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição, não tem qualquer cabimento afirmar que o processo sumário, menos solene e garantístico, possa ser aplicado a todos os arguidos detidos em flagrante delito independentemente da medida da pena aplicável. 

Não subsiste motivo para que, em caso de flagrante delito, o recurso ao processo sumário se não mantenha dentro do limite abstrato máximo de competência do juiz singular quando intervenha em processo comum. Ainda que não haja obstáculo a que o âmbito de aplicação do processo sumário se estenda aos casos em que a pena a aplicar em concreto não deva ultrapassar os cinco anos por via do funcionamento de um mecanismo equivalente ao previsto no artigo 16º, n.º 3, do CPP, que o Tribunal considerou já não ser inconstitucional (acórdão n.º 296/90).

O legislador estabeleceu a repartição de competência entre o tribunal singular e o tribunal coletivo em processo comum em função da gravidade do crime imputado, não apenas por referência à tipologia do crime, mas também ao desvalor do resultado e à gravidade da moldura penal prevista - artigos 14º e 16º do CPP (quanto a este específico objetivo cfr. artigo 2º, n.º 1, alínea 57, da autorização legislativa que originou o CPP). E nada justifica, em face de todas as anteriores considerações, que esse mesmo critério valorativo não tenha aplicação quando haja lugar ao julgamento em processo sumário.

A solução legal mostra-se, por isso, violadora das garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.


III – Decisão

Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32º, n.ºs 1 e 2, da Constituição.

Sem custas.

Lisboa, 18 de fevereiro de 2014. 

– Carlos Fernandes Cadilha – Maria de Fátima Mata-Mouros – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Maria José Rangel de Mesquita – Pedro Machete – Ana Guerra Martins – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral – José da Cunha Barbosa – Maria João Antunes (vencida, de acordo com a declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro (Não considero que o uso do processo sumário, para julgamento de crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável seja superior a cinco anos de prisão, contenda, de forma constitucionalmente censurável, com as garantias de defesa do arguido, considerando a configuração actual daquela forma de processo e, sobrevindo, a salvaguarda disposta pelo artº 390º, nº 1, al. c) do CPP. O que é constitucionalmente desconforme é que alguém possa ser condenado, em Tribunal singular, a mais de cinco anos de prisão).


DECLARAÇÃO DE VOTO


Votei no sentido da não declaração da inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstratamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, pelas razões que, de seguida, exponho:
1. Entendo que a tramitação vigente do processo sumário assegura o julgamento do arguido no mais curto prazo possível compatível com as garantias de defesa (artigo 32.º, n.ºs 1 e 2, da Constituição), harmonizando as finalidades que são apontadas ao processo penal de um Estado de direto democrático: a descoberta da verdade material e a realização da justiça, a proteção dos direitos dos cidadãos e o restabelecimento da paz jurídica comunitária e da paz jurídica do arguido, postas em causa com a prática do crime. Sem prejuízo de entender, no plano do direito infraconstitucional, que há outros pontos de harmonização político-criminalmente mais corretos, nomeadamente por assegurarem uma maior coerência sistemática, e de considerar que tem havido uma descaracterização censurável do processo sumário, podendo mesmo equacionar-se a sua transformação numa forma simplificada do processo comum. Diferentemente da tramitação prevista na versão primitiva do Código de Processo Penal (CPP), o direito vigente autonomiza uma fase pré-judicial (artigos 382.º e 384.º) e alarga, de forma evidente, os atos e os termos do julgamento (artigos 387.º, 389.º e 389.º-A do CPP).
A fase anterior ao julgamento em processo sumário contempla a possibilidade de o arguido requerer, desde logo, prazo para a preparação da sua defesa, não superior a 15 dias (artigos 382.º, n.ºs 3 e 5, 383.º, n.º 2, e 387.º, n.º 2, alínea c), do CPP), bem como a possibilidade de o Ministério Público ordenar diligências de prova essenciais à descoberta da verdade, o que é especialmente relevante, do ponto de vista das garantias de defesa, numa estrutura processual penal onde esta magistratura não tem o estatuto de parte processual (cf. artigos 382.º, n.ºs 4 e 5, e 387.º, n.º 2, alínea c), do CPP e, ainda, artigos 219.º da Constituição e 53.º do CPP). Na fase de julgamento, à extensão do âmbito do processo sumário correspondem soluções diferentes das previstas para os casos de crime punível com pena de prisão não superior a 5 anos (ou em caso de concurso de infrações cujo limite máximo não seja superior a 5 anos): o prazo máximo previsto para a produção de toda a prova eleva-se para 90 dias a contar da detenção, podendo, excecionalmente, por razões devidamente fundamentadas, designadamente por falta de algum exame ou relatório pericial, ir até 120 dias a contar da detenção (artigo 387.º, n.º 10, do CPP); o Ministério Público não pode substituir a apresentação da acusação pela leitura do auto de notícia da autoridade que tiver procedido à detenção (artigo 389.º, n.º 1, do CPP), o que, juntamento com o previsto no já referido artigo 382.º, n.º 4, é uma manifestação clara do princípio da acusação e, consequentemente, da estrutura acusatória do processo (cf. artigo 32.º, n.º 5, primeira parte, da Constituição). Além de que o juiz elabora a sentença por escrito e procede à sua leitura, se for aplicada pena privativa da liberdade, o que tem também a ver com a possibilidade de o crime ser punível com pena de prisão superior a cinco anos, face ao limite legalmente estabelecido para a substituição da pena de prisão (artigo 389.º-A, n.º 5, do CPP).
Por outro lado, a audiência de julgamento está subordinada ao princípio do contraditório (entre outros, artigos 386.º, n.º 1, 387.º, n.ºs 4 e 6, 389.º, n.º 6, do CPP); não valem quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, para o efeito de formação da convicção do tribunal (artigo 386.º, n.º 1, e 355.º, n.º 1, do CPP); o tribunal pode sempre ordenar, oficiosamente ou a requerimento (nomeadamente do arguido), a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigos 340.º, n.º 1, por força do artigo 386.º, n.º 1, e 387.º, n.ºs 4 e 7, do CPP); o processo é reenviado para a forma comum quando não tenha sido possível, por razões devidamente justificadas, a realização das diligências de prova necessárias à descoberta da verdade no prazo previsto no n.º 10 do artigo 387.º do CPP (artigo 390.º, n.º 1, alínea c), do CPP); regulando-se o julgamento em processo sumário pelas disposições do CPP relativas ao julgamento em processo comum, poderá sempre haver a reabertura da audiência para a determinação da sanção (artigos 371.º e 386.º do CPP); o arguido tem, nos termos gerais, o direito ao duplo grau de recurso, conhecendo a relação de facto e de direito, sempre que este tribunal confirme decisão de 1.ª instância que aplique pena de prisão superior a 8 anos, de acordo com os artigos 400.º, n.º 1, alínea f), 427.º, 428.º e 432.º do CPP (do ponto de vista jurídico-constitucional já é, porém, censurável a limitação decorrente da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º do mesmo Código).
2. Entendo que as garantias de defesa do arguido não são necessariamente desrespeitadas por o julgamento caber ao tribunal singular. Ponto é que o processo criminal, globalmente considerado, assegure todas as garantias de defesa.
No plano do direito infraconstitucional, o critério da atribuição de competência aos tribunais de júri, coletivo e singular não assenta exclusivamente na gravidade da pena aplicável ao crime (artigos 13.º. 14.º e 16.º do CPP). A competência para julgar é atribuída (e foi sempre atribuída) por referência à pena abstratamente aplicável, à natureza dos crimes ou à maior ou menor facilidade de apreciação e valoração da prova por parte do tribunal. No que se refere ao tribunal singular, ao qual é também deferida competência residual, compete-lhe julgar os processos que respeitarem a crimes cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão (alínea b) do n.º 2 do artigo 16.º). E, ainda, uma vez que a formação da convicção do tribunal está aí especialmente facilitada: os processos que respeitarem aos crimes contra a autoridade pública (alínea a) do n.º 1 do artigo 16.º), daqui resultando que o limite abstrato máximo da competência do juiz singular em processo comum não corresponde propriamente a cinco anos de prisão (cf. artigos 347.º, n.º 2, 350.º, n.º 1, 354.º e 355.º do Código Penal); e os que devam ser julgados em processo sumário por ter havido detenção em flagrante delito por autoridade judiciária ou entidade policial ou por outra pessoa que entregou o detido, em prazo curto, a autoridade judiciária ou entidade policial (alínea c) do n.º 1 do artigo 16.º). Com a salvaguarda de esta forma de processo não se aplicar aos detidos em flagrante delito por crime que se inscreva na criminalidade altamente organizada, por crime contra a identidade cultural e a integridade pessoal, por crime contra a segurança do Estado ou por crime previsto na Lei Penal Relativa às Violações de Direito Internacional Humanitário (artigo 381.º, n.º 2, do CPP), valendo aqui, além de razões estritamente atinentes à determinação da competência do tribunal de júri (artigo 13.º, n.º 1, do CPP), o entendimento de que a natureza da criminalidade em presença anula ou diminui, do ponto de vista da valoração da prova, as vantagens associadas à detenção em flagrante delito. Independentemente, pois, da gravidada da pena abstratamente aplicável ao crime (a alguns dos crimes corresponde pena de prisão até 5 anos. Cf., por exemplo, artigos 160.º, n.ºs 4, 5 e 6, e 335.º do Código Penal).
No plano do direito constitucional não decorre um qualquer critério de atribuição de competência ao tribunal singular, ao tribunal coletivo ou ao tribunal de júri, decorrendo somente do artigo 207.º, n.º 1, da Constituição que o júri intervém no julgamento dos crimes graves, salvo os de terrorismo e os de criminalidade altamente organizada. E da jurisprudência anterior deste Tribunal não resulta propriamente o afastamento do julgamento por tribunal singular em função da pena máxima abstratamente aplicável ao crime. A questão é deixada em aberto, nomeadamente nos Acórdãos n.ºs 393/89 e 550/98, lendo-se até, na declaração de voto aposta pelo Conselheiro Luís Nunes de Almeida à primeira decisão, que partilha «o entendimento de que o “julgamento pelo tribunal singular (em vez de o ser pelo tribunal coletivo) não importa uma diminuição das garantias de defesa tal que deva ser havida constitucionalmente ilegítima”» (decisões disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt). A propósito da discussão doutrinal e jurisprudencial que então teve lugar a propósito do n.º 3 do artigo 16.º do CPP, Figueiredo Dias defendeu que «não há rigorosamente nada na Constituição» que impeça a aplicação pelo tribunal singular de uma pena de prisão em medida superior à pré-determinada pelo Ministério Público. Isto é, superior à pena máxima que então limitava o julgamento pelo tribunal singular, segundo o critério da gravidade abstrata da pena aplicável ao crime – 3 anos de prisão, aos quais correspondem hoje 5 anos (“Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal”, Jornadas de Direito Processual Penal. O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 20).
Diga-se, por último, que relativamente a crimes puníveis com pena de prisão superior a 8 anos, o arguido ou Ministério Público, que o poderá fazer em nome dos interesses da defesa, poderão requerer a intervenção do tribunal de júri, nos termos previstos no artigo 390.º, n.º 1, alínea b), do CPP, sendo os autos reenviados para processo comum. O tribunal de júri é o único, relembre-se, ao qual a Constituição defere competência para o julgamento de crimes graves, quando a defesa ou a acusação o requeiram.

Maria João Antunes


Fonte: clique aqui (Tribunal Constitucional) 

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