Discurso proferido na cerimónia de tomada de posse do Vice-Presidente do STJ Conselheiro Sebastião Póvoas
(30 de Outubro de 2013)
As
instituições vivem também e permanecem no encontro do espaço simbólico,
que é verdadeiramente constitutivo, no sentido forte, da substância da
missão e da função.
A instituição judicial é verdadeiramente paradigmática na essencialidade dos ritos, que permitem qualificar os momentos e dar um sentido ao espaço de distanciamento e de alteridade como condições da aspiração radical à justiça.
Hoje
reunimo-nos neste local histórico para assinalar, com a solenidade
ritual, um momento relevante da vida de quase dois séculos do Supremo
Tribunal.
Eleito
pelos seus Pares, vai tomar posse como Vice-Presidente do Supremo
Tribunal de Justiça o Senhor Conselheiro Sebastião Póvoas.
Felicito-o
vivamente, Senhor Conselheiro, pela confiança que mereceu do Colégio
dos Juízes, e quero dizer-lhe a honra que tenho em presidir ao acto de
posse de Vossa Excelência.
Vai
exercer a missão de serviço público que os Seus Pares lhe confiam num
tempo de desafios inesperados e num ambiente de excepcional
complexidade.
A
desregulação financeira global, a catástrofe económica que as
projecções teóricas não previram e o enfraquecimento do sistema social
produziram efeitos disruptivos dos modelos jurídico-substantivos de
regulação.
Ao
mesmo tempo, o discurso omnipresente dos economistas, que satura o
espaço público, capturou e sobrepôs-se à discussão política, criando um
«deserto dogmático» que não deixa espaço à reflexão.
A
conjuntura, ou a radicalidade para-definitiva da «emergência», aceita
mal que as formas e as garantias dos modelos jurídicos de regulação
social deixem espaço limitado para utilitarismos ou juízos de mera
oportunidade.
A
ambivalência do valor da estabilidade das relações jurídicas, na
dicotomia oportunidade - estabilidade-intangibilidade, traduz o declínio
do direito em confronto com a explosão legislativa de mera
instrumentalidade, e um abaixamento sensível da densidade operativa dos
princípios do Estado de direito, com conflitos de temporalidade e
regulações instáveis e incertas.
Numa expressão sugestiva, é «a desforra de Bentham sobre Kant».
Neste contexto, o juiz confronta-se com situações de intensidade contraditória, que lhe exigem respostas de difícil acomodação.
A
jurisprudência tem como função fazer a passagem e a mediação entre a
lei, os princípios e a vida; concretiza e aproxima a lei e os princípios
na diversidade real dos contextos da vida, reduzindo a tensão que
existe em qualquer sistema jurídico entre a função de legislar e a
função de julgar.
A
lei, por regra, quando pretende construir a solução geral e abstracta
para determinado problema, fixa os parâmetros e os critérios de decisão;
e fixa também os instrumentos e os princípios metodológicos de
interpretação.
Deste
modo, o espaço maior de intervenção do juiz - e da jurisprudência -
estará nos casos em que a lei, por compromissos e dificuldades na
elaboração ou por imprevisão do legislador, deixa questões em aberto de
resolução.
Mas,
em tais situações, a intervenção no «desenvolvimento jurisprudencial do
direito» não poderá ser arbitrária, devendo ser fundamentada em
critérios de actuação hermenêutica, nos princípios gerais e em
concepções comunitárias de justiça.
Na
determinação do sentido da lei, completando-a ou suprindo as
insuficiências da lei, o juiz exerce também um poder normativo enquanto
co-determina o sentido que o legislador se limita a «pré-determinar».
A
interpretação da lei constitui, por isso, um pressuposto da intervenção
do juiz e um «necessário princípio metódico», mas não esgota a função
da jurisprudência. A aproximação a cada caso concreto pode exigir
precisão, complemento ou adaptação; pode ser necessário «densificar
determinado pensamento ou ideia da lei» à luz de princípios fundamentais
ou constitutivos.
No
ambiente político, económico e social com que nos confrontamos, a
jurisprudência tem de caminhar por um caminho estreito, por entre a lei e
a densidade das regras, o pragmatismo possível, o manejamento de
princípios e a aceitável coordenação entre a prudentia e o conhecimento e a experiência das situações da vida.
Nas
matérias mais sensíveis, especialmente na demanda de direitos nas
sociedades de incerteza, a jurisprudência fica, não raro, confrontada
com exigências de intervenção, ou com críticas de excesso de
intervenção.
Neste
debate, os termos «activismo» e «auto-contenção» constituem expressões
codificadas na semântica para criticismo ou aplauso, mas não são mais do
que slogans vazios se os conceitos não forem recentrados no lugar próprio.
Os
conceitos de «activismo» e de «auto-contenção» apenas podem intervir
nos espaços em que o juiz, decidindo de acordo com a lei, possa ter
alguma liberdade dentro de escolhas alternativas; não são actos de
vontade, e nem o activismo nem a contenção permitem uma decisão com
violação da lei.
Num
tempo de ambivalências e de conflitos de modelos de regulação, a
jurisprudência confronta-se, muitas vezes, com a necessidade de novas
leituras de categorias e noções com estatuto normativo, construídas como
«válvulas de segurança» para responder a situações-limite de quebra nos
equilíbrios das relações e das prestações.
Tais
categorias podem constituir instrumentos que permitam encontrar uma
solução «prática, aceitável, credível» e justa, na conjugação dos
princípios com as situações contextuais da vida e respeitando as
exigências da razão jurídica.
Na sociedade de incerteza, a função dos Supremos Tribunais revela-se, por isso, crucial.
Os
tribunais são o lugar da figuração filosófica do direito e da justiça,
como instituição matricial que une os cidadãos ao espaço democrático.
E os últimos garantes da soberania em tempos de soberania limitada.
Pela
posição que ocupa, o Supremo Tribunal constitui a instituição superior
de mediação simbólica e da dignidade filosófica da forma judiciária.
No
respeito pelas formas judiciais, compete-lhe repelir o espírito
antijurídico do cepticismo, consagrando a certeza e a segurança através
da coerência e da estabilidade da jurisprudência.
O
valor da estabilidade será conseguido pela força do convencimento e
pela capacidade sempre revelada de construir e afirmar correntes
jurisprudenciais que possam constituir efectivos precedentes num sistema
que não tem como obrigatória a regra do precedente.
Mas a instituição judicial enfrenta hoje dificuldades materiais acrescidas.
A
função matricial do Supremo Tribunal não poderá ser exercida sem a
dotação das condições materiais mínimas - designadamente no plano
orçamental.
O
esforço e a absoluta e permanente disponibilidade dos seus Juízes,
magistrados do Ministério Público, oficiais de justiça e funcionários
merecem o respeito institucional em matéria orçamental, que permita
garantir a funcionalidade de órgão de soberania da República; mesmo nas
circunstâncias difíceis do País, há limites de dignidade institucional
que não poderão ser ultrapassados.
E
neste momento as condições orçamentais para o funcionamento do Supremo
Tribunal estão já no limite da dignidade institucional, e constituem
motivo de profunda preocupação que tenho manifestado nas instâncias
políticas.
Senhor Conselheiro Sebastião Póvoas:
Vossa
Excelência vai exercer funções num tempo de enormes exigências, mas o
Supremo Tribunal fica reconfortado por poder contar com o apoio
esclarecido de Vossa Excelência na coadjuvação do Presidente.
A
superior inteligência, a variada experiência multidisciplinar -
judicial, na governação, na formação e na representação diplomática - a
excepcional cultura, a mundividência e o espírito cosmopolita enriquecem
o Supremo Tribunal, sendo, por isso, um privilégio poder beneficiar da
cooperação empenhada e disponível de Vossa Excelência nas funções de
Vice-Presidente.
Bem haja, e faço votos para os maiores êxitos neste exercício.
(António Henriques Gaspar)