2011-06-20

 

Justiça: uma perspectiva institucional num Estado de Direito Democrático


Na véspera da tomada de posse da nova Ministra da Justiça, recorda-se uma expressão concreta do seu pensamento estratégico para o sector, concretizado em 2009, na sequência da cerimónia de abertura do ano judicial, reproduzido aqui:

«Anteontem ‘reabriu’ o Ano Judicial. Parece-me que o Ano Judicial deve abrir quando abre mesmo. Sem desconhecer a razão da tradição, o facto é que abriu quando já estava aberto. O Governo aproveitou o cerimonial e foi, também ele, desfasado.

Há anos atrás, o Congresso da Justiça e o Primeiro Pacto – entre magistraturas, advocacia, solicitadores, funcionários judiciais – uniram os operadores. Ganhou-se a consciência crítica da necessidade de diagnósticos e acções comuns, que se efectuaram e encetaram.

Pela primeira vez as tensões dentro do Sistema foram compreendidas e deram-se passos para obter uma cultura comum, tendo como objectivo primeiro o Cidadão. O Pacto para a Justiça travou a funcionalização das Magistraturas.

No discurso do Governo está tudo bem – e nós a saber que não. Sob o olhar preocupado do Presidente da República, desfilou o discurso da realidade virtual. Nem uma palavra sobre a independência dos Tribunais e a agonia do Ministério Público. Assim haja força para não o permitir.

As alterações ao Estatuto do Ministério Público conjugadas com o novo mapa judiciário violam princípios e garantias constitucionais e põem em causa a independência dos Tribunais.

O Conselho Superior do Ministério Público é esvaziado de poderes, a hierarquia pode movimentar como entender magistrados entre serviços situados em áreas do território entre as quais existem grandes distâncias; os procuradores-gerais nos Tribunais da Relação são nomeados em comissão de serviço (renováveis em função do parecer da hierarquia); sem concursos, a hierarquia coopta-se a si própria (os que forem de confiança); as escolhas das coordenações e chefias intermédias são feitas com base em indicação da hierarquia, violando o princípio da igualdade no acesso às carreiras públicas.

Princípios de independência, de inamovibilidade, de autonomia, são destituídos de sentido. Instala-se a falta de transparência na actuação do Ministério Público. Que importa, se é exactamente isto que o Governo pretende? Convém-lhe.

O Senhor Provedor da Justiça, os Grupos Parlamentares, não podem deixar de suscitar a fiscalização da constitucionalidade das alterações ao Estatuto.

A nós, compete-nos não deixar. Pelo menos aqueles que são livres e incondicionáveis.

Há que resistir à vontade do Governo de deixar a independência dos Tribunais em estilhaços.»



Comentário:

Saúda-se o pensamento estratégico acima concretizado pela Dra. Paula Teixeira da Cruz, na medida em que revela respeito pela:

- independência dos tribunais; e

- a autonomia do Ministério Público.

Entende-se que apenas esta concepção permitirá o aprofundamento do Estado de Direito Democrático e a criação das condições institucionais fundamentais para:

- um combate verdadeiro à corrupção, à prevaricação e ao abuso de poder;

- a defesa dos agentes económicos e dos cidadãos em geral dos incumprimentos financeiros do Estado; e

- o desenvolvimento e implementação de uma organização judicial, judiciária e processual participada, transparente, pacífica e verdadeiramente eficaz.



Desafio imediato: cumprir o memorando de entendimento assinado com a Troika


Recorda-se, a propósito, que o acordo com a Troika não exige, incondicionalmente, a expansão do mapa judiciário.

O texto do acordo exige, expressamente, que a mesma seja "integralmente financiada através das poupanças nas despesas e em ganhos de eficiência", compreendendo a medida como esforço de racionalização, de modo a melhorar a eficiência na gestão de infra‐estruturas e de serviços públicos.


Analisando a forma como foi concretizada a criação da nova Comarca de Lisboa, em diploma publicado nesta data, (Decreto-Lei n.º 74/2011. D.R. n.º 117, Série I de 2011-06-2011), observa-se que a mesma garante perdas de eficiência, negação de critérios de gestão racional dos meios humanos, escolha absurda da data de entrada em funcionamento, implicando um aumento insustentável das pendências, atrasos processuais de vários anos em centenas de milhar de processos, resultantes, também, da inevitável quebra da taxa de resolução processual.

A forma apressada, pouco transparente e infundamentada - contrariando, aliás, todos os estudos conhecidos realizados a respeito do novo mapa judiciário - como o diploma foi aprovado, permitia antever o pior, agora publicado sob a forma de Decreto-Lei.

A criação da nova Comarca de Lisboa exigirá a transferência de meio milhão de processos, obrigando ao adiamento de diligências. Para voltar a movimentar 500.000 processos, com menos meios humanos do que os pré-existentes e ausência de ferramentas informáticas que assegurem uma transição sem hiatos, os atrasos serão inevitáveis e prolongados. O sistema judicial não terá capacidade de resposta para fazer face aos processos pendentes, nem para resolver os novos processos.


Conclusão


Uma das primeiras tarefas importantes da nova legislatura e do novo Governo será analisar - e, se necessário, reequacionar e redefinir - o modelo da nova organização judiciária portuguesa, uma vez que o mesmo apresenta falhas importantes que poderão comprometer os objectivos previstos para a reorganização judiciária e violar as condições estipuladas no
memorando de entendimento assinado com a Troika.

Aplicando os valores de referência processual aprovados anteriormente (ratio processos/meios humanos judiciais), a expansão do mapa judiciário não é exequível, a não ser que haja um forte investimento em meios humanos e materiais o que, - por força dos condicionamentos orçamentais e os esbanjamentos multimilionários com arrendamentos de edifícios impróprios para instalar tribunais - por ora, será incomportável.

Mais importante, urgente - e exequível - do que a reorganização judiciária já planeada será uma reforma da acção executiva, do processo civil declarativo (v.g. processo civil experimental), do processo penal (com reforço das decisões orais documentadas em meios digitais, alargamento significativo da possibilidade de recolha antecipada da prova testemunhal em processo penal, a qual seria documentada em meios áudio-visuais digitais - conforme previsto na iniciativa Tribunal XXI - implementação da mediação penal e simplificação processual, sem prejuízo das garantias judiciárias fundamentais do cidadão), bem como a necessária "reforma" do SITAF nos tribunais administrativos e fiscais - medidas que deverão ser precedidas de discussão e formação adequadas -.


S.m.o., os resultados seriam imediatos, com reflexos positivos na eficácia, credibilidade e imagem da justiça portuguesa.

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Comments:
Parabéns pelo excelente artigo, aliás muito elogiado no InVerbis.

VAsco Rodrigues
 
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