2010-10-10

 

O défice público exige melhor Justiça. Cortes nos vencimentos: uma questão (também) jurídica



A redução de vencimentos


A redução dos vencimentos e salários da "função pública" constitui uma medida compreensível no plano estritamente financeiro, pois assegura uma diminuição imediata das despesas públicas em 800 milhões de euros - vide esta notícia -. Segundo o mesmo artigo, o aumento em 1% dos descontos para a C.G.A. implicará um aumento estimado das receitas públicas em 140 milhões de euros.

Políticos, economistas e especialistas em finanças públicas têm sublinhado a inevitabilidade de tais medidas draconianas, sobretudo, para assegurar financiamentos externos a custos mais suportáveis e de evitar o recurso ao Fundo Monetário Internacional, que obrigaria a Assembleia da República, igualmente, a reduzir fortemente a despesa pública. Segundo os mesmos, estará em causa o superior interesse nacional.

Ninguém de bom senso põe em causa a necessidade de diminuir a despesa e de aumentar a receita pública em Portugal. Porém, isso não pode ser realizado contra legem.

Numa qualquer ditadura ou monarquia absoluta seria possível fazer aprovar medidas draconianas, apenas e tão só, em nome do "superior interesse nacional", interpretado pelos titulares do poder político. Num Estado de Direito, porém, qualquer medida legislativa ordinária tem respeitar a Lei fundamental e qualquer acto administrativo tem de respeitar a legislação.

Perante a emergência da situação, poucos terão sido aqueles que analisaram previamente a legalidade da redução dos vencimentos da Função Pública (como se viu, já, no retrocesso verificado no anúncio da proibição de acumulação de reformas e de pensões, também claramente ilegal).



A este respeito pode ser elencado um conjunto de impedimentos constitucionais à anunciada redução dos vencimentos, na medida em que tal medida é susceptível de violar:

a) o princípio da irredutibilidade/intangibilidade dos vencimentos:

Uma entidade empregadora - pública ou privada - não pode reduzir unilateralmente e de forma indiscriminada o salário de qualquer trabalhador, agente ou funcionário. Numa hipótese extrema, tal poderia conduzir o trabalhador a desistir do seu emprego por diminuição unilateral das condições contratuais.

b) o princípio da igualdade:

A redução dos vencimentos e salários dos servidores públicos, mantendo para os trabalhadores em geral a garantia de irredutibilidade, envolverá uma violação flagrante do princípio da igualdade, tal se encontra consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa.

Não há motivo juridicamente válido para impor aos funcionários ou agentes públicos menores garantias ou direitos daqueles que caracterizam a situação daqueles que trabalham para entidades privadas.

c) os princípios constitucionais da proporcionalidade e segurança jurídicas e o da confiança, que neste último se encontra contido.

Qualquer trabalhador tem direito à estabilidade da sua remuneração, de modo a poder planear as suas finanças privadas e a contrair as suas obrigações financeiras, segundo as previsões dos seus rendimentos.

A pretendida redução de vencimentos e salários compromete tais legítimas expectativas jurídicas e financeiras de forma violenta e flagrante e suscitam temores justificados em relação ao futuro.

A progressividade da taxa a aplicar, com uma variação situada entre 3,5% e 10% também é injusta, pois uma taxa igualitária sempre asseguraria uma receita superior para o Estado nos casos de vencimentos superiores.


O défice e a reforma da justiça

A diminuição da despesa pública também implicará um retrocesso nas condições de funcionamento dos tribunais - novos oficiais de justiça que não são admitidos, tribunais que não são construídos, et alia). O que é um contra-senso, senão veja-se:

Se os Tribunais Judiciais tivessem os meios para administrarem a Justiça em tempo útil, o P.I.B. português poderia crescer mais de 5% ao ano...


Nestes termos, uma aposta estratégica do Estado (e, consequentemente, das finanças públicas) deverá passar por conceder aos tribunais as condições necessárias para serem mais eficazes.

Na verdade, a economia e as finanças públicas dependem de um Poder Judicial eficaz.
A eficácia pressupõe maior simplicidade de procedimentos, melhor aproveitamento dos recursos existentes e uma melhoria dos meios de trabalho, de valor reduzido, tendo em conta os benefícios expectáveis.


Por outro lado, os resultados negativos das contas públicas também são devidos, em grande medida, aos poderes insuficientes conferidos ao Tribunal de Contas, de controlar e de não permitir contratações públicas que constituam encargos financeiros absolutamente excessivos e injustificáveis, por existirem opções de maior racionalidade económico-financeira.





Nesta altura em que o défice público constitui uma das principais preocupações dos cidadãos e dos diversos poderes do Estado, chamo a atenção para a necessidade de reforço dos poderes do Tribunal de Contas.

Muitas parcerias público-privadas, concessões e muitos contratos públicos resultaram em prejuízo, aliás previsível, para o erário público.

Também aqui se explica o défice público, sobretudo aquele que se reflectirá nas contas públicas daqui a dez ou vinte anos.

Se o Tribunal de Contas já tivesse esses poderes alargados, provavelmente, nem existiria défice nas contas públicas.

É a seriedade, credibilidade e eficiência do regime que está em causa.

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Comments:
Absolutamente pertinente o que V. afirma.
O sistema judiciário, se for bem administrado, dá lucro. Só dá prejuizo porque tem sido usado para alavancar outras operações, nomeadamente imobiliárias. Veja-se o cado do Campus de Lisboa...
 
Agradeço o seu comentário.

Porém, embora os tribunais até tenham apresentado "lucro" até ao ano 2000, não era a esse proveito que aludi na minha postagem.

Uma boa e célere administração da justiça aumenta o poder de atracção do país a novos investimentos estrangeiros e nacionais, garante o bom funcionamento do mercado e das regras de concorrência e até... melhora o rating internacional da dívida pública portuguesa, por tais melhorias.

Por exemplo, as relações comerciais passam a ser mais fiáveis, assegurando a cobrança dos créditos e o mercado de arrendamento é revitalizado.
 
Concordo inteiramente com a essencialidade do investimento nos tribunais. O qual deve andar a par de um exigentíssimo esforço de revogação, simplificação e codificação das leis. Os edifícios dos tribunais, seus equipamentos e a gestão das pessoas que os servem não estão à altura. Mas o edifício jurídico em si, no que respeita à lei e à estrutura organizada que serve o Direito e a Justiça envergonham-nos.
Tenho as minhas dúvidas - e não só eu, como alguns constitucionalistas que para aí vi serem citados - quanto à inconstitucionalidade da redução de vencimentos e salários na função pública.
Crítica sumária aos argumentos apontados:
A intangibilidade dos vencimentos -
Existem limites mínimos legalmente ou cctmente previstos (a começar pelo salário mínimo nacional). Acima deles nada vejo que impeça a variação. Nem sequer razões de Justiça. A vida não é uma evolução linear, é feita de avanços e de recuos, como muito bem sabe qualquer adepto das correntes de pensamento assentes na dialéctica. Por outro lado não vejo qual seja o problema do trabalhador desistir do seu «emprego» por diminuição unilateral das condições contratuais. Pode fazê-lo e ainda bem que o pode fazer. É por isso que estamos a perder para a actividade privada os médicos mais experientes. Mal seria obrigar o trabalhador a permanecer «empregado» nessas circunstâncias.
O princípio da igualdade -
Os funcionários públicos têm desde logo um regime específico. Legal, disciplinar, de «segurança social», etc. A «diferença» e a consequente violação do princípio da igualdade se encarado nesses termos ocorre desde logo em relação à matriz.
Os pp da proporcionalidade, segurança jurídica, confiança e estabilidade - A segurança jurídica não se confunde, a meu ver, com a sgurança e estabilidade económicas. Enquanto que uma sociedade organizada em Estado pode e consegue assegurar a primeira não pode, pura e simplesmente, garantir a segunda. Ora, os salários dependem, em primeiro lugar, da economia - ou há ou não há dinheiro. Só depois do Direito. Como qualquer mutuário sabe, as taxas de juros variam constantemente e dificultam a vida a quem queira planear as suas finanças. Os despedimentos, os acordos de revogação de contrato de trabalho, as insolvências, também.
Constou-me que o António Barreto defendeu recentemente que temos que começar a pensar distinguir os direitos sociais constitucionalmente consagrados dos direitos fundamentais propriamente ditos: à vida, à integridade física, liberdade de expressão, reunião, associação, etc.
Concordo com essa ideia. É perigoso confundir o que é distinto. Qualquer dia poderemos perder o bebé ao esvasiarmos a água do banho.
De facto, a Europa - e muito particularmente Portugal - confronta-se hoje com perspectivas de grave empobrecimento, não de enriquecimento.
A meu ver é uma tendência que vem desde os mal negociados acordos do GATT, causada não só por isso mas por muitas outras razões que não cabe aqui referir. Mas é incontornável. E temos que a encarar de frente, se a queremos superar.
 
Concordo com a análise que faz. Infelizmente, veremos que, mais uma vez, a Lei será ultrapassada pelos interesses económicos. Existem alternativas legais para diminuir a despesa. Só que atingiriam outros grupos económicos.
Este é, para mim, o pior mal da Justiça em Portugal: a falta de segurança jurídica. Tívessemos nós um sistema mais seguro e mais célere e aí o acréscimo de 5 pp do PIB seria garantido.
Cumprimentos,

Patrício Antunes
 
Até os famosos congelamentos de contas privadas no tempo do Collor de Melo foram assumidos enquanto provisórios e com direito a reembolso. E passados anos, os tribunais condenaram o Estado Brasileiro na sua devolução e com juros. Já no que respeita aos novos cortes na Europa, são feitos sem qualquer negociação e, como diz o outro, forever. Se eu quero cortar nas despesas em minha casa, não posso começar por cortar nas dívidas que tenho! Hoje são os salários, amanhã os postos de trabalho. O que o impedirá?
 
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