2007-10-24

 

Ainda a respeito das escutas telefónicas

A jurisprudência referida na postagem anterior corresponde, substancialmente, ao objecto do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 729/2006, de 28 de Novembro de 2006, publicado no Diário da República, II – Série, de 10 de Janeiro de 2007, relatado pelo Conselheiro Paulo Mota Pinto e que teve os votos favoráveis dos Conselheiros Mário José de Araújo Torres e Rui Manuel Moura Ramos e os votos de vencidos dos Conselheiros Benjamim Rodrigues e Maria Fernanda Palma.

Os votos maioritários formaram o seguinte entendimento:

Julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.o, n.o 1, da Constituição, a norma do artigo 188º, nº 3, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual permite a destruição de elementos de prova obtidos mediante intercepção de telecomunicações, que o órgão de polícia criminal e o Ministério Público conheceram e que são considerados irrelevantes pelo juiz de instrução, sem que o arguido deles tenha conhecimento e sem que se possa pronunciar sobre a sua relevância;

Para fundamentar esse entendimento, os Conselheiros Mário José de Araújo Torres e Rui Manuel Moura Ramos basearam-se, essencialmente, nalguma jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem:

a) a lei que prevê a possibilidade de realização de escutas telefónicas deve definir «as precauções a tomar para comunicar, intactos e completos, os registos realizados, para o controlo do juiz e da defesa», possibilitando às pessoas colocadas sob escuta o direito de acesso às gravações e respectivas transcrições, e «as circunstâncias nas quais pode e deve proceder-se ao apagamento ou destruição das fitas magnéticas, nomeadamente após uma absolvição ou o arquivamento do processo», e que o nosso sistema, na medida em que permite a destruição dos registos das comunicações sem conhecimento da defesa, mas apenas do Ministério Público, e segundo a apreciação da sua relevância pelo juiz, se encontra isolado no contexto das ordens jurídicas mais próximas. Vejamos estes dois pontos mais em pormenor. A afirmação de que as legislações nacionais devem tomar precauções para assegurar «a comunicação intacta e completa das gravações efectuadas, para efeito de controlo pelo juiz e pela defesa» e estabelecerem as circunstâncias em que se pode operar o apagamento ou a destruição das gravações, designadamente após o arquivamento definitivo do processo ou o trânsito em julgado da condenação final, encontra-se em várias decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Assim, esse Tribunal disse nos números 34 e 35 dos Acórdãos Huvig e Kruslin, de 24 de Abril de 1990, sobre legislação francesa em matéria de escutas, que «o sistema não oferece de momento as garantias adequadas contra diversos abusos a recear. Por exemplo, nada define as categorias de pessoas susceptíveis de serem colocadas sob escuta judiciária, nem a natureza das infracções que podem dar lugar a elas; nada vincula o juiz a fixar um limite à duração da execução da medida; e também nada precisa as condições de realização de procedimentos verbais de síntese consignando as conversações interceptadas, com o fim de controlo eventual pelo juiz— que não pode de todo deslocar-se ao local para verificar o número e a duração das fitas magnéticas originais — e pela defesa, nem as circunstâncias em que pode ou deve realizar-se o apagamento ou a destruição das ditas fitas», designadamente após absolvição ou trânsito em julgado).

b) Resulta desta jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, referida já nos Acórdãos n.os 528/2003, 426/2005 e 4/2006, que a privação da possibilidade, pela imediata destruição da gravação que o juiz entende irrelevante (aliás, segundo o referido Acórdão nº 426/2005, possivelmente sem a ouvir, e apenas com base em transcrições), de a defesa requerer a transcrição de passagens não seleccionadas pelo juiz, e que não foram objecto de uma comunicação intacta e completa para controlo pela defesa, corresponde a uma diminuição das garantias da defesa—o que também já se consignou nos referidos Acórdãos n.o 426/2005 e 4/2006. Também por isso (comose nota neste último aresto) se disse no citado Acórdão nº 426/2005 que «deve ser facultado à defesa (e também à acusação) a possibilidade de requerer a transcrição de mais passagens que as inicialmente seleccionadas pelo juiz, quer por entenderem que as mesmas assumem relevância própria, quer por se revelarem úteis para esclarecer ou contextualizar o sentido de passagens anteriormente seleccionadas». Quanto à comparação da solução que está em apreciação repete-se: a da destruição imediata dos suportes das escutas com base na apreciação da sua relevância pelo juiz, sem que o arguido se possa pronunciar sobre ela — com o regime vigente em outras ordens jurídicas europeias mais próximas da nossa, pode igualmente remeter-se para o Acórdão nº 4/2006 (n.o 2.8), para se verificar que aquela solução se encontra isolada (v. também, para o que se segue, Mireille Delmas-Marty e Mário Chiavario, Procedure Penali d’Europa, 2ª ed., CEDAM, Padova, 2001).

Os votos de vencido expressaram os seguintes entendimentos:

Do Conselheiro Benjamim Rodrigues, em suma:

a) o recorrente não suscitou a questão de constitucionalidade de que se conheceu. E a entender-se haver alguma alegação de uma questão de constitucionalidade, ela mostrar-se-ia feita, relativamente ao preceito do artigo 188.o, n.o 3, do CPP, em termos abstractos, ou seja, independentemente de uma sua aplicação como ratio decidendi de uma questão concreta relativa às escutas cuja resolução houvesse sido pedida ao tribunal de recurso;

b) O recorrente não colocou ao tribunal de recurso qualquer questão concreta relativa à relevância probatória a conferir— no sentido de poder fundar ou de não poder fundar, na elaboração do juízo judicial, um resultado de convincência concernente a concretos e específicos factos — a determinadas e identificadas escutas transcritas. Nomeadamente, o recorrente não questionou perante o tribunal de recurso que as escutas transcritas, constantes dos autos, não pudessem fundar qualquer juízo de convincência acerca da existência dos factos afirmados com base nelas, porque o sentido com que haveriam de ser entendidas era não aquele que lhe foi atribuído pelo juiz de instrução, mas um outro diferente. Mais, o recorrente não alega, sequer, que a destruição das escutas o impedisse de fazer prova destes ou daqueles factos em sede de julgamento, mas apenas que a conservação das gravações não transcritas até ao trânsito em julgado da decisão final constitui um direito fundamental, «podendo o arguido requerer a sua audição em sede de julgamento ou de recurso para contextualizar as conversações transcritas» (itálico aditado). Ou seja, o recorrente alega a contextualização das escutas transcritas como necessidade eventual da defesa no acto de julgamento ou no recurso, ou seja, em nome de um direito geral de defesa que poderá, então, hipoteticamente, traduzir-se em actos de defesa concreta, relacionados com as escutas ou não. Isto equivale por dizer que o recorrente se apoia num princípio de que tudo o que vai sendo adquirido pelo processo, no seu decurso, tem de permanecer nele até ao trânsito em julgado da decisão definitiva, porque o arguido poderá, eventualmente, detectar, nesses meios de prova, elementos factuais relativos aos próprios meios de prova ou à realidade cuja existência os mesmos tendem a demonstrar de que poderá beneficiar na sua defesa. Ora, o nosso processo penal não está estruturado sobre esse princípio, nem decorre da Constituição penal e processual penal essa exigência de acautelar uma hipotética, eventual e indeterminada estratégia de defesa no exercício do direito de defesa.

Da Conselheira Fernanda Palma:

a) a norma contida no artigo 188º, nº 3, do Código de Processo Penal, nos termos da qual o juiz de instrução pode ordenar a destruição das fitas gravadas ou de materiais similares de conversas telefónicas interceptadas consideradas irrelevantes, não deve ser julgada inconstitucional. Em minha opinião, tal norma consagra, em termos constitucionalmente admissíveis, a possibilidade de correcção pelo tribunal de uma intromissão injustificada na reserva da intimidade da vida privada do arguido ou de terceiros (artigo 26º, nº 2, da Constituição);

b) O legislador ordinário poderia solucionar o conflito de interesses dando sempre preponderância às garantias de defesa e ao contraditório, desde que a intercepção fosse legítima. Todavia, entender que o juiz de instrução está proibido de ordenar a destruição de quaisquer gravações de escutas que considere, segundo a sua análise e ponderação, manifestamente irrelevantes constitui uma interpretação desproporcionada das exigências constitucionais no processo penal.

c) Não se infere da Constituição que o legislador ordinário esteja impedido, nesta situação, de procurar salvaguardar outros interesses — que também têm, de resto, a dignidade de direitos fundamentais. Além disso, o contraditório vale na audiência de julgamento e noutros actos que a lei determinar (artigo 32º, nº 5, da Constituição), mas não forçosa e ilimitadamente no debate, em sede de inquérito, de todos os meios de investigação e de obtenção de prova na fase de inquérito.

d) Pretender que, uma vez realizada, a escuta irrelevante passe a poder servir a defesa, segundo a vontade arbitrária do arguido, implica concluir que a Constituição impõe uma dissolução dos limites de actuação da autoridade pública, que são limites do Estado de direito, na recolha da prova em função de um hipotético e não necessariamente demonstrado interesse da defesa.

e) Por seu turno, os argumentos retirados do direito comparado não têm em conta a estrutura global do processo penal nos ordens jurídicas invocadas. No caso da Alemanha, vigora uma orientação próxima do artigo 188º, nº 3, do nosso Código. Com efeito, o § 100 b, nº 6, do Código de Processo Penal alemão prevê que: «Não sendo os documentos obtidos já necessários para a prossecução da acção penal, destruídos imediatamente sob fiscalização do Ministério Público. Da destruição deve fazer-se acta.».» A ponderação feita pelo legislador alemão dá, como se vê, prevalência a um autêntico dever de destruição dos dados desnecessários, em função de uma estrita contenção da intervenção da autoridade pública no círculo da esfera privada dos cidadãos;

f) Por seu lado, a sentença citada do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem refere-se apenas à comunicação integral e completa das conversações interceptadas ao arguido. Ainda assim, esse aresto pressupõe um nível de relevância delimitado, pelo menos, em função do âmbito subjectivo das escutas, não se opondo à destruição dos materiais irrelevantes referentes a conversações em que o arguido não intervenha.

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