2007-09-19
Silogismos da reforma da justiça penal portuguesa: o caso julgado penal
Tendo entrado em vigor a nova versão do Código Penal e do Código de Processo Penal, julgo oportuno descrever e analisar, no Blog de Informação, algumas questões merecedoras de referência especial - procurando suscitar novas abordagens e reflexões sobre matérias que ainda não tenham merecido aprofundada discussão pública - .
Normalmente, as principais críticas já surgidas na comunicação social e na blogosfera dizem respeito ao Código de Processo Penal.
Contudo, também no Código Penal, as alterações introduzidas levantam algumas questões dogmáticas interessantes - e com repercussão na eficiência do sistema de administração da justiça penal -.
Quanto ao caso julgado penal:
Desde logo, veja-se a alteração importantíssima - e controversa - introduzida pela nova redacção do artigo 2º, nº 4, do Código Penal:
Redacção anterior da norma:
"Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente, salvo se este já tiver sido condenado por sentença transitada em julgado."
Com a nova redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007 de 4 de Setembro:
"Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior."
Do confronto das duas normas que se sucederam no tempo, resulta desde logo claro que o legislador afastou consciente e deliberadamente a limitação que existia para a aplicação do regime que se mostrasse concretamente mais favorável ao arguido, que era a existência de trânsito em julgado da sentença.
Tratava-se de uma limitação imposta pela própria noção de caso julgado penal, segundo o regime jurídico então aplicável.
A norma, na sua versão originária, tem como referência e origem de direito comparado o § 2º do Código Penal Alemão (Strafgesetzbuch), que assegura, de forma ainda mais vincada, o caso julgado penal.
Porém, mudando de uma forma extraordinária a ratio legis da norma, o legislador português introduziu a inovação referida, alterando desse modo, substancialmente, a noção e os efeitos do caso julgado penal. E fê-lo, sem sequer publicar (leia-se tornar públicas) as razões de tal alteração verdadeiramente radical.
Nestes termos, a reforma penal portuguesa afasta-se, completamente, da solução expressa no Código Penal Alemão, que apenas previa - e continua a prever - a aplicação da lei penal que se mostre concretamente mais favorável antes da decisão proferida. O respeito pelo caso julgado penal, com o alcance previsto no Strafgesetzbuch, é justificado por razões jurídicas bem claras: com o julgamento e a inerente decisão final, o Estado define as consequências jurídicas dos factos provados, segundo a lei penal aplicável - a lei aplicável é aquela que estiver em vigor à data do(s) crime(s), ou que tenha entrado em vigor até à decisão, se a mesma se mostrar concretamente mais favorável ao condenado.
De algum modo, fará tanto sentido reabrir um caso penal, porque o limite máximo da pena aplicável ao crime em causa foi diminuído seis meses, como reabrir um caso penal, porque a vítima (por exemplo de um crime de natureza semi-pública) escreveu uma carta ao condenado, após o trânsito em julgado da condenação, manifestando-lhe perdão. A reabertura de um caso já julgado, com trânsito em julgado da sentença, deverá ser excepcional e não constituir regra, sob pena de ser posta em causa, também, a segurança jurídica e a paz social.
Anteriormente, uma condenação transitada em julgado apenas poderia ser reapreciada em sede de recurso de revisão (possibilidade prevista no Código de Processo Penal), principalmente, caso fossem entretanto descobertos novos factos ou meios de prova que, per se, ou conjugados com os que foram apreciados no processo, suscitassem fundadas dúvidas sobre a justeza da condenação.
Se o Estado entende, em certo momento, introduzir medidas de clemência - como, por exemplo, através da amnistia de certos crimes ou através do perdão (parcial ou total) de penas -, pode fazê-lo através de legislação apropriada (as conhecidas leis de amnistia). Contudo, o preço político a pagar por tal medida - impopular aos olhos do cidadão comum - seria, certamente, bem maior.
A meu ver, não é curial, do ponto de vista estritamente jurídico, fazê-lo através de uma alteração do Código Penal (e do C.P.P., conforme adiante explicarei) que permita a alteração do caso julgado penal, mediante nova decisão, uma vez que perturba a segurança jurídica e a paz social, sem que haja quaisquer benefícios evidentes que justifiquem essas consequências indesejáveis, contrárias à ratio axiológico-normativa de qualquer sistema penal.
A norma, na sua versão originária, tem como referência e origem de direito comparado o § 2º do Código Penal Alemão (Strafgesetzbuch), que assegura, de forma ainda mais vincada, o caso julgado penal.
Porém, mudando de uma forma extraordinária a ratio legis da norma, o legislador português introduziu a inovação referida, alterando desse modo, substancialmente, a noção e os efeitos do caso julgado penal. E fê-lo, sem sequer publicar (leia-se tornar públicas) as razões de tal alteração verdadeiramente radical.
Nestes termos, a reforma penal portuguesa afasta-se, completamente, da solução expressa no Código Penal Alemão, que apenas previa - e continua a prever - a aplicação da lei penal que se mostre concretamente mais favorável antes da decisão proferida. O respeito pelo caso julgado penal, com o alcance previsto no Strafgesetzbuch, é justificado por razões jurídicas bem claras: com o julgamento e a inerente decisão final, o Estado define as consequências jurídicas dos factos provados, segundo a lei penal aplicável - a lei aplicável é aquela que estiver em vigor à data do(s) crime(s), ou que tenha entrado em vigor até à decisão, se a mesma se mostrar concretamente mais favorável ao condenado.
De algum modo, fará tanto sentido reabrir um caso penal, porque o limite máximo da pena aplicável ao crime em causa foi diminuído seis meses, como reabrir um caso penal, porque a vítima (por exemplo de um crime de natureza semi-pública) escreveu uma carta ao condenado, após o trânsito em julgado da condenação, manifestando-lhe perdão. A reabertura de um caso já julgado, com trânsito em julgado da sentença, deverá ser excepcional e não constituir regra, sob pena de ser posta em causa, também, a segurança jurídica e a paz social.
Anteriormente, uma condenação transitada em julgado apenas poderia ser reapreciada em sede de recurso de revisão (possibilidade prevista no Código de Processo Penal), principalmente, caso fossem entretanto descobertos novos factos ou meios de prova que, per se, ou conjugados com os que foram apreciados no processo, suscitassem fundadas dúvidas sobre a justeza da condenação.
Se o Estado entende, em certo momento, introduzir medidas de clemência - como, por exemplo, através da amnistia de certos crimes ou através do perdão (parcial ou total) de penas -, pode fazê-lo através de legislação apropriada (as conhecidas leis de amnistia). Contudo, o preço político a pagar por tal medida - impopular aos olhos do cidadão comum - seria, certamente, bem maior.
A meu ver, não é curial, do ponto de vista estritamente jurídico, fazê-lo através de uma alteração do Código Penal (e do C.P.P., conforme adiante explicarei) que permita a alteração do caso julgado penal, mediante nova decisão, uma vez que perturba a segurança jurídica e a paz social, sem que haja quaisquer benefícios evidentes que justifiquem essas consequências indesejáveis, contrárias à ratio axiológico-normativa de qualquer sistema penal.
O legislador apenas previa - e continua a prever, justamente - a existência de uma excepção a essa regra, perfeitamente compreensível: segundo o disposto no nº 2 do art. 2º do Código Penal, "O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma lei nova o eliminar do número das infracções: neste caso, e se tiver havido condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais."
Todos percebem o alcance desta norma: se num dado momento, os cidadãos, através do órgão legislativo do Estado, entenderem que certa conduta já não tem dignidade penal - por força do princípio da intervenção mínima do direito penal -, e eliminarem a mesma do elenco das condutas proibidas e punidas por lei penal, também deixará de fazer sentido exigir o cumprimento coercivo das penas impostas em condenações anteriores, quanto a tais factos, cuja ilicitude penal foi , entretanto, afastada, pela nova lei.
Não se trata, neste caso, de uma alteração da graduação da ilicitude e, consequentemente, da pena a aplicar: o que está em causa é, pura e simplesmente, a própria ilicitude penal do facto.
A conduta deixa constituir crime.
Mediante a mera leitura da nova redacção do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, o leitor poderia ser impelido a acreditar que em caso de condenação, ainda que transitada em julgado, "apenas" cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior... porque é isso que vem previsto na parte final da referida norma.
Contudo, ao alterar a natureza e as consequências jurídicas do caso julgado penal, nos termos acima concretizados, o legislador abriu a possibilidade de inovar, também, no processo penal.
Assim, a leitura do artigo 2º, nº 4 do Código Penal deverá ser complementada com a análise do disposto no art. 371º-A, do Código de Processo Penal:
Depois de um processo penal se encontrar numa fase de execução da sentença, possibilita-se o regresso momentâneo (mas apenas em parte, porque continua sujeito ao cumprimento da pena originariamente aplicada, enquanto não for alterada por decisão judicial, ou cumprida) à fase declarativa, mediante um novo incidente previsto na lei.
Uma pequena observação:
Quem não se lembra dos longos metros de papel que o Professor Boaventura Santos mostrou numa edição do programa da RTP 1 «Prós e Contras», com os quais pretendeu - e conseguiu - evidenciar a morosidade dos processos, emergente do elevadíssimo número de incidentes, requerimentos e despachos, legalmente admissíveis, e que podem constituir o labirinto de um processo judicial.
Não satisfeito com o statu quo, o legislador aumentou mais uns centímetros a milhares de processos... implicando, também, atrasos na tramitação dos demais milhares de casos, ainda não julgados.
Afinal o que é mais importante para o Estado: julgar os casos com rapidez e qualidade (com rigor de procedimentos e de conteúdos decisórios) ou reapreciar casos já julgados, com trânsito em julgado das respectivas decisões?...
Uma observação importante:
O legislador faz depender a reabertura da audiência de julgamento - para aplicação da lei mais favorável, nos termos do art. 371º-A, do C.P.P. - da iniciativa da apresentação de requerimento por parte dos arguidos condenados. Tal constitui uma inovação que contraria o espírito do Código de Processo penal, onde o princípio do dispositivo é relegado, essencialmente, para as questões pertinentes à apreciação de pedido de indemnização civil e nunca para matérias que dizem respeito aos direitos liberdades e garantias de natureza penal.
Logo, faz depender a aplicação de lei mais favorável, em muitos casos, do grau de probidade dos defensores - os defensores nomeados para um acto processual mantêm-se nessa condição para os actos subsequentes do processo, enquanto não forem substituídos - art. 66º, 4, do C.P.P. -.
Resta saber o que vai suceder nos casos concretos... se os defensores:
b) vão estudar, de motu proprio, nos seus arquivos pessoais ou nos tribunais todos os processos em que já intervieram como defensor, para apurar se as penas aí aplicadas ainda não se mostram cumpridas, e os crimes passaram a ter uma moldura penal mais favorável ao arguido, com a nova reforma penal;
No limite, caso nenhuma das hipóteses anteriores ocorra em certos casos, poderá suceder, na prática, que apenas os arguidos com poder económico para contratar um advogado acabem por beneficiar do novo regime penal, o qual se tornará ainda mais desigualitário:
A reabertura da audiência, para efeitos de aplicação da lei mais favorável - nos termos do art. 371º-A, do C.P.P. - não pode ter lugar oficiosamente, nem a pedido do Ministério Público.
Todos percebem o alcance desta norma: se num dado momento, os cidadãos, através do órgão legislativo do Estado, entenderem que certa conduta já não tem dignidade penal - por força do princípio da intervenção mínima do direito penal -, e eliminarem a mesma do elenco das condutas proibidas e punidas por lei penal, também deixará de fazer sentido exigir o cumprimento coercivo das penas impostas em condenações anteriores, quanto a tais factos, cuja ilicitude penal foi , entretanto, afastada, pela nova lei.
Não se trata, neste caso, de uma alteração da graduação da ilicitude e, consequentemente, da pena a aplicar: o que está em causa é, pura e simplesmente, a própria ilicitude penal do facto.
A conduta deixa constituir crime.
Mediante a mera leitura da nova redacção do nº 4 do artigo 2º do Código Penal, o leitor poderia ser impelido a acreditar que em caso de condenação, ainda que transitada em julgado, "apenas" cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior... porque é isso que vem previsto na parte final da referida norma.
Contudo, ao alterar a natureza e as consequências jurídicas do caso julgado penal, nos termos acima concretizados, o legislador abriu a possibilidade de inovar, também, no processo penal.
Assim, a leitura do artigo 2º, nº 4 do Código Penal deverá ser complementada com a análise do disposto no art. 371º-A, do Código de Processo Penal:
Artigo 371.º-A
Abertura da audiência para aplicação retroactiva de lei penal mais favorável
Se, após o trânsito em julgado da condenação mas antes de ter cessado a execução da pena, entrar em vigor lei penal mais favorável, o condenado pode requerer a reabertura da audiência para que lhe seja aplicado o novo regime.Abertura da audiência para aplicação retroactiva de lei penal mais favorável
Depois de um processo penal se encontrar numa fase de execução da sentença, possibilita-se o regresso momentâneo (mas apenas em parte, porque continua sujeito ao cumprimento da pena originariamente aplicada, enquanto não for alterada por decisão judicial, ou cumprida) à fase declarativa, mediante um novo incidente previsto na lei.
Uma pequena observação:
Quem não se lembra dos longos metros de papel que o Professor Boaventura Santos mostrou numa edição do programa da RTP 1 «Prós e Contras», com os quais pretendeu - e conseguiu - evidenciar a morosidade dos processos, emergente do elevadíssimo número de incidentes, requerimentos e despachos, legalmente admissíveis, e que podem constituir o labirinto de um processo judicial.
Não satisfeito com o statu quo, o legislador aumentou mais uns centímetros a milhares de processos... implicando, também, atrasos na tramitação dos demais milhares de casos, ainda não julgados.
Afinal o que é mais importante para o Estado: julgar os casos com rapidez e qualidade (com rigor de procedimentos e de conteúdos decisórios) ou reapreciar casos já julgados, com trânsito em julgado das respectivas decisões?...
Uma observação importante:
O legislador faz depender a reabertura da audiência de julgamento - para aplicação da lei mais favorável, nos termos do art. 371º-A, do C.P.P. - da iniciativa da apresentação de requerimento por parte dos arguidos condenados. Tal constitui uma inovação que contraria o espírito do Código de Processo penal, onde o princípio do dispositivo é relegado, essencialmente, para as questões pertinentes à apreciação de pedido de indemnização civil e nunca para matérias que dizem respeito aos direitos liberdades e garantias de natureza penal.
Logo, faz depender a aplicação de lei mais favorável, em muitos casos, do grau de probidade dos defensores - os defensores nomeados para um acto processual mantêm-se nessa condição para os actos subsequentes do processo, enquanto não forem substituídos - art. 66º, 4, do C.P.P. -.
Resta saber o que vai suceder nos casos concretos... se os defensores:
a) vão ser alertados pelos arguidos por si (outrora) defendidos que podem estar numa situação de poder beneficiar da aplicação de lei mais favorável; e/ou
b) vão estudar, de motu proprio, nos seus arquivos pessoais ou nos tribunais todos os processos em que já intervieram como defensor, para apurar se as penas aí aplicadas ainda não se mostram cumpridas, e os crimes passaram a ter uma moldura penal mais favorável ao arguido, com a nova reforma penal;
No limite, caso nenhuma das hipóteses anteriores ocorra em certos casos, poderá suceder, na prática, que apenas os arguidos com poder económico para contratar um advogado acabem por beneficiar do novo regime penal, o qual se tornará ainda mais desigualitário:
A reabertura da audiência, para efeitos de aplicação da lei mais favorável - nos termos do art. 371º-A, do C.P.P. - não pode ter lugar oficiosamente, nem a pedido do Ministério Público.
Etiquetas: aplicação da lei mais favorável, Código de Processo Penal, Código Penal, reforma penal