2014-03-01

 

Acórdão do Tribunal Constitucional, com força obrigatória geral:





Processo n.º 1125 e 1126/2013

3ª Secção

Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha

«(...) Ainda que essa medida seja compreensível no plano de política legislativa, e numa perspetiva utilitarista de eficácia da prevenção criminal, ela não pode justificar, por si, por via de um princípio civilístico de solidariedade passiva, a transferência da responsabilidade penal da pessoa coletiva para o seu administrador ou gerente.
Desde logo, a multa aplicada em processo penal, como sanção de caráter público e indisponível que corresponde à ofensa de um dever jurídico estabelecido imediatamente no interesse da coletividade, como a função sancionatória ou preventiva, não pode transmudar-se num dano ou prejuízo a ressarcir no âmbito de uma responsabilidade civil, quando este instituto traduz sobretudo a ideia de reparação de um dano privado - cfr. artigo 562º do Código Civil (quanto à natureza pessoalíssima da multa enquanto pena criminal, FIGUEIREDO DIAS, Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, págs. 118-119). Por outro lado, a responsabilidade solidária não pode ser entendida como uma forma de responsabilidade civil emergente do crime, a que se refere o artigo 129º do Código Penal, visto que, neste caso, a reparação do dano, ainda que arbitrada segundo os pressupostos e critérios do direito civil, é uma consequência jurídica do crime e, como tal, um efeito puramente civil da condenação penal, que apenas pode ser fundado no facto penal.
Nem parece curial, contrariamente ao que por vezes se afirma, reconduzir o regime constante do n.º 7 do artigo 8º, a uma forma de responsabilidade civil por facto próprio. A colaboração dolosa na prática do crime tributário implica que o administrador ou gerente possa ser chamado a responder pessoalmente pela mesma infração, a par da sociedade, e daí que essa conduta não possa ser tida como um facto autónomo, que determine simultaneamente a responsabilidade solidária pelas consequências jurídicas da condenação penal em que tenha incorrido a pessoa coletiva. Não estão aqui em causa quaisquer factos, anteriores ou posteriores à aplicação da multa penal, que tenham colocado a pessoa coletiva na impossibilidade de pagamento. Nem é invocável um qualquer argumento de identidade ou de maioria de razão para tornar equiparável a disciplina desse preceito à responsabilidade subsidiária a que se refere o n.º 1 do artigo 8º (cfr., entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 16 de março de 2012, Processo n.º 1407/09, e do Tribunal da Relação do Porto de 2 de maio de 2012, Processo n.º 1113/06, e de  6 de junho de 202, Processo n.º 11/06, e, mais recentemente, o acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, de 8 de janeiro de 2014, Processo n.º 331/04).
Ainda que a obrigação solidária surja qualificada formalmente como uma obrigação de natureza civil, com subordinação aos princípios gerais da solidariedade passiva, ela não deixa de representar, na prática, uma consequência jurídica do ilícito penal que foi diretamente imputado à pessoa coletiva. Isso porque a responsabilidade solidária, ainda que dependente de uma conduta dolosa do administrador ou gerente, assenta no próprio facto típico que é caracterizado como infração.
Ora, a imposição de uma responsabilidade solidária a terceiro para pagamento de multas aplicadas à pessoa coletiva, independentemente de ele poder ser corresponsabilizado como coautor ou cúmplice na prática da infração – tal como admite o n.º 7 do artigo 8º -, configura uma situação de transmissão da responsabilidade penal, na medida em que é o obrigado solidário que passa a responder pelo cumprimento integral da sanção que respeita a uma outra pessoa jurídica, implicando a violação do princípio da pessoalidade das penas consignado no artigo 30º, n.º 3, da Constituição.
O princípio da responsabilidade criminal das pessoas coletivas, que começou por ser admitido em certas áreas delimitadas da criminalidade (direito criminal da economia, da saúde, da informática ou das infrações tributárias), foi consagrado como regra, relativamente a certo tipo de crimes, no direito penal de justiça, através da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro, com base num critério de imputação assente numa atuação em nome e no interesse da pessoa coletiva e que não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes (artigo 11º, n.º 2 e 7, do Código Penal). Não se trata, por isso, de uma responsabilidade por facto de outrem, mas antes de uma verdadeira responsabilidade autónoma e distinta da responsabilidade que possa ser imputada a pessoas físicas que compõem a pessoa coletiva e que pressupõe que estas entidades possam constituir objeto de censura ético-penal (PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário ao Código Penal, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 81). E nesse sentido, a multa aplicada a pessoa coletiva em processo penal não perde o caráter de pena criminal e o seu efeito de natureza pessoalíssima, com a consequente sujeição ao princípio consagrado naquele artigo 30º, n.º 3, da Lei Fundamental (quanto à não inconstitucionalidade da criminalização das pessoas coletivas, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 213/95).
Como refrações do princípio da pessoalidade das penas aponta-se a extinção da pena e do procedimento criminal com a morte do agente, a proibição da transmissão da pena para familiares, parentes ou terceiros e a impossibilidade de subrogação no cumprimento das penas (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, I vol., 4ª edição, Coimbra, pág. 504). Por outro lado, com o princípio da pessoalidade das penas não se pretende afirmar que os efeitos das penas não possam refletir-se desfavoravelmente em relação a terceiros mas tão-só que o seu efeito direto e imediato se deve limitar à pessoa do delinquente, de forma a que, se a lei comina a aplicação de uma pena de multa para uma certa infração, somente aquele que a praticou a deve sofrer ou pagar (JOÃO CASTRO E SOUSA, As Pessoas Coletivas em face do Direito Criminal e do chamado Direito de Mera Ordenação, Coimbra, 1985, pág. 118). Proíbe-se, em suma, que a pena recaia sobre uma pessoa diferente da que praticou o facto que lhe serve de fundamento (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 337/2003).
Estamos perante uma transmissão de pena com o sentido definido pelo artigo 30º, n.º 3, da Constituição, quando se verifica a imputação de responsabilidade a uma certa categoria de sujeitos para suprir a inoperatividade prática da responsabilidade penal que recai sobre a pessoa coletiva.
A responsabilidade solidária do administrador ou gerente pressupõe que, em momento anterior, tenha sido estabelecida a responsabilidade penal da pessoa coletiva, com a aplicação de uma multa. A determinação em concreto da medida da pena, no correspondente processo penal, tem por base fatores exclusivamente atinentes à pessoa coletiva enquanto autora da infração, e à qual são estranhas quaisquer circunstâncias que digam pessoalmente respeito ao responsável solidário, como o grau de culpa ou a sua situação económica. 
Certo é que constitui condição da responsabilidade solidária, nos termos do n.º 7 do artigo 8º do RGIT, a comparticipação do gerente na prática da infração tributária, mas essa relação de causalidade, podendo originar uma responsabilidade pessoal, não tem qualquer interferência na fixação da multa aplicável à pessoa coletiva. A responsabilidade solidária opera independentemente da responsabilidade pessoal do condevedor e quer a este seja ou não imputada, a título individual, a mesma infração.
A norma prevê, por conseguinte, não já uma mera responsabilidade ressarcitória de natureza civil, mas uma responsabilidade sancionatória por efeito da extensão ao agente da responsabilidade penal da pessoa coletiva.
Poderá dizer-se que a comunicação ao administrador ou gerente da multa aplicada à pessoa coletiva pela prática da infração corresponde a um mecanismo de garantia de pagamento do quantitativo monetário da multa, que não encerra uma censura penal, nem impede o ulterior exercício do direito de regresso contra a sociedade, nem tem para o responsável solidário outras consequências de natureza estritamente penal (cfr., neste sentido, o acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ, de 8 de janeiro de 2014).
O ponto é que nenhuma destas considerações, a manterem validade, descaracteriza o aspeto central do regime sancionatório instituído pelo n.º 7 do artigo 8º do RGIT. O que importa reter é que a pessoa coletiva exime-se ao cumprimento da pena através da transferência do dever de pagar a multa para o devedor solidário e o Estado exonera-se, por essa via, do exercício do jus puniendi de que é titular. O que consubstancia objetivamente uma transmissão de pena e põe em causa a indisponibilidade dos interesses que as reações criminais visam tutelar. 

III – Decisão
Nestes termos, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 8.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias, na parte em que se refere à responsabilidade solidária dos gerentes e administradores de uma sociedade que hajam colaborado dolosamente na prática de infração pelas multas aplicadas à sociedade, por violação do artigo 30º, n.º 3, da Constituição.



Lisboa, 18 de fevereiro de 2014. – Carlos Fernandes Cadilha – Lino Rodrigues Ribeiro – Catarina Sarmento e Castro – João Cura Mariano – Maria José Rangel de Mesquita – Pedro Machete – Ana Guerra Martins – Maria João Antunes – Fernando Vaz Ventura – Maria Lúcia Amaral (com declaração) – José da Cunha Barbosa – Maria de Fátima Mata-Mouros (vencida, nos termos da declaração junta) – Joaquim de Sousa Ribeiro.



DECLARAÇÃO DE VOTO

1.  A questão da conformidade constitucional da norma constante do artigo 8.º, n.º 7 do RGIT relaciona-se com uma série de problemas que o Tribunal tem sido chamado a resolver relativos a regimes legais que instituem mecanismos de responsabilidade de administradores, gerentes, ou pessoas que exerçam de facto funções de administração, quanto a multas ou coimas que tenham sido aplicadas às respetivas pessoas coletivas.

Verifica-se que, em todas as decisões, o Tribunal Constitucional, como não poderia deixar de ser, parte do direito infraconstitucional com o intuito de descrever e analisar o quadro legal em que se insere a norma ou normas cuja conformidade com a Constituição é questionada, acabando inevitavelmente por tomar posição sobre a qualificação da responsabilidade – matéria que, por se situar no plano do direito infraconstitucional, não é sequer da sua competência e, obviamente, não vincula os tribunais.

De acordo com uma leitura apressada dessa jurisprudência, a natureza da responsabilidade teria sido decisiva para o juízo sobre a conformidade constitucional das normas em apreciação. Teria sido pela circunstância de, em alguns casos, se ter afastado a natureza penal ou contraordenacional do título por que é responsabilizado o agente (tendo-se considerado aí prever-se antes uma forma de responsabilidade civil), que o Tribunal se não teria determinado pela inconstitucionalidade das normas então em apreciação. Por sua vez, a qualificação da responsabilidade como penal ou contraordenacional ter-se-ia revelado decisiva para um juízo positivo de inconstitucionalidade da norma em apreciação.

Simplesmente, não é essa a correta leitura da referida jurisprudência do Tribunal Constitucional. E não o é pela simples razão de que, sendo o Tribunal Constitucional incompetente para tomar posição sobre a correta interpretação do direito ordinário, jamais a qualificação, efetuada no plano do direito infraconstitucional, da responsabilidade se poderia revelar só por si determinante para efeitos do juízo sobre a sua conformidade constitucional.

A um órgão jurisdicional ao qual compete «[...] especificamente administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucional» (artigo 221.º da CRP), o núcleo da fundamentação do juízo – seja este de não inconstitucionalidade ou de inconstitucionalidade – há de estar, não no direito infraconstitucional (na natureza da responsabilidade), mas na Constituição.



2.  Assim, e independentemente da qualificação que se adote quanto à responsabilidade prevista no artigo 8.º, n.º 7 do RGIT, o legislador, ao compor o regime sancionatório das infrações tributárias, estão, em qualquer caso, vinculados pelos princípios constitucionais com relevo em matéria penal. Sendo a Constituição um sistema normativo unitário, ao intérprete – desde logo, ao legislador e, obviamente, também ao poder judicial – é exigida uma interpretação integrada da mesma.

Ao determinar que os administradores, gerentes e outras pessoas que exerçam, ainda que somente de facto, funções de administração em pessoas coletivas, e que colaborem dolosamente na prática de certa infração tributária, serão solidariamente responsáveis pelas multas aplicadas pela prática da infração, independentemente da sua responsabilidade pela mesma, a norma constante do n.º 7 do artigo 8.º do RGIT é inconstitucional, por violar princípios constitucionais com relevo em matéria penal.

Com efeito, a norma permite que quem tenha sido condenado em virtude da sua própria comparticipação na infração venha a ser chamado a responder pelo pagamento da multa aplicada à pessoa coletiva. Mas a verdade é que não parece ser constitucionalmente legítimo que se faça recair, sobre o indivíduo que já foi penalmente condenado pelo seu próprio comportamento, uma qualquer outra obrigação, seja de que natureza for, e que venha a acrescer à sanção que lhe foi concretamente aplicada. Os princípios que estruturam o ordenamento jurídico-penal, e que decorrem em última análise da dignidade das pessoas – o que fundamenta o princípio da culpa, e, por seu turno, o princípio da intransmissibilidade das penas, prescrito no nº 3 do artigo 30.º da CRP – impedem que assim seja.

Tal não significa, note-se, que o propósito de conferir eficácia acrescida à tutela penal dos bens jurídicos protegidos seja jurídico-constitucionalmente irrelevante. A garantia de efetiva cobrança de créditos por parte da Administração Tributária associada a uma perspetiva de eficácia de prevenção criminal assume indiscutivelmente um valor constitucional suscetível de justificar a compressão de direitos ou de valores constitucionais com ele conflituantes, não podendo esse valor deixar de ser tido em conta na ponderação efetuada, desde logo, pelo legislador na modelação do regime geral das infrações tributárias.

Simplesmente, a liberdade de conformação de que goza o legislador nesse – como em qualquer outro – domínio não é ilimitada, cabendo à justiça constitucional efetuar um controlo sobre a ponderação efetuada a nível legislativo.

Ora, a garantia de efetiva cobrança de créditos tributários associada a uma perspetiva de eficácia de prevenção criminal, não tem um peso tal que justifique que um indivíduo, cumulativamente com a sanção que lhe foi aplicada no âmbito de um processo penal, fique responsável por qualquer outra obrigação, seja de que natureza for.

Maria Lúcia Amaral.

DECLARAÇÃO DE VOTO

Votei vencida, pelos fundamentos constantes da minha declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 297/13.

Acresce que o Supremo Tribunal de Justiça proferiu, em 8 de janeiro de 2014, um acórdão a uniformizar jurisprudência na matéria em que afasta a tese da natureza penal da responsabilidade prevista no artigo 8.º, n.º 7 do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT).

Sendo assim, persistir no juízo de inconstitucionalidade da norma contida no artigo 8.º, n.º 7 do RGIT, por a responsabilidade solidária do gerente pelo pagamento da multa aplicada à sociedade, ali prevista, não respeitar a Constituição Penal, significa ignorar a interpretação dada pelo Supremo Tribunal de Justiça àquele preceito legal, num acórdão que, por ser uniformizador de jurisprudência, tem por fim persuadir os órgãos jurisdicionais a seguirem o seu sentido decisório e que tem o seguinte teor: “nos termos do n.º 7 do art. 8º do Regime Geral das Infracções Tributárias, sendo condenados em coautoria material de infração dolosa, uma pessoa coletiva ou uma sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou outra entidade fiscalmente equiparada, e os seus administradores, gerentes, ou outras pessoas que exerçam de facto funções de administração, estes são civil e solidariamente responsáveis pelo pagamento das multas ou coimas em que a pessoa coletiva, sociedade ou entidade fiscalmente equiparada for condenada, independentemente da responsabilidade pessoal que lhes caiba” (destacado meu).



Ora, não cabendo ao Tribunal Constitucional definir a interpretação válida do direito infraconstitucional, antes julgar a conformidade de normas com a Constituição, a questão que fica por responder é então a de saber qual a posição do Tribunal Constitucional sobre a conformidade constitucional da norma contida no artigo 8.º, n.º 7 do RGIT, se interpretada como prevendo uma responsabilidade de natureza meramente civil, de acordo com a jurisprudência agora uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Nesta conformidade, a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória, agora proferida pelo Tribunal Constitucional acaba por não contribuir, afinal, para a resolução da questão essencial que consiste em saber se é conforme à Constituição a norma contida no artigo 8.º, n.º 7 do RGIT, na interpretação acolhida por orientação jurisprudencial uniformizada. Questão, esta, que agora surge como essencial para assegurar a certeza e a segurança jurídica do ordenamento jurídico em conformidade com a Constituição. 



Maria de Fátima Mata-Mouros

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