2007-10-24

 

Ainda a respeito das escutas telefónicas (II)




A propósito da questão em referência
, suscitada na audiência de julgamento da primeira instância, relatei o acórdão no processo comum com intervenção do tribunal colectivo nº 401/04.5JAFAR, no Tribunal Judicial da Comarca de Tavira.


Nesta decisão da primeira instância, o tribunal colectivo teve em conta a jurisprudência mencionada na postagem anterior, ao motivar a decisão nos seguintes termos (segue transcrição da nota de rodapé nº 21 do acórdão):

«Contudo, importa expressar o entendimento fundamentado deste tribunal colectivo a respeito da questão jurídica suscitada pelos requerentes, de modo a afastar qualquer possibilidade de poder ser considerada a existência, nos autos, de um "meio proibido de prova" - e, nesses termos, a sua inadmissibilidade poder ser reconhecida em sede de julgamento -:

Em primeiro lugar, entende-se que a previsão legal vertida no art. 188º, nº 3, do Código de Processo Penal, ao prever a desmagnetização das escutas telefónicas, não é ferida de inconstitucionalidade material, porque não atinge o direito de defesa dos arguidos expressamente previsto no preceito constitucional invocado pelos requerentes - o art. 32º da Constituição da República Portuguesa -, que tem a seguinte redacção: «O processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório".

Da própria norma constitucional decorre, nomeadamente, o seguinte:

a) nem todos os actos instrutórios estão sujeitos ao princípio do contraditório; e
b) apenas a fase de julgamento é caracterizada pelo princípio do contraditório;


Os arguidos tiveram ampla possibilidade de contraditar todos os meios concretos de prova indicados na pronúncia, nomeadamente o teor da prova documental emergente das escutas telefónicas.

Para densificar o exercício do contraditório, este tribunal ocupou várias sessões da audiência de julgamento, procedendo à escuta pública de uma amostra significativa das gravações das chamadas telefónicas que foram alvo de intercepção, de modo a sindicar o carácter fidedigno das traduções de tais diálogos e da documentação das transcrições do teor das escutas telefónicas. Convidou-se os arguidos, expressamente, para, querendo, explicar o teor das chamadas por si efectuadas e que constituem prova em julgamento. Nada quiseram explicar. Aliás, este comportamento surge em sequência de:

a) Não terem apresentado qualquer contestação ao despacho de pronúncia;
b) Não terem apresentado qualquer meio concreto de prova;
c) Não terem prestado quaisquer declarações na audiência de julgamento, cujos trabalhos, aliás, acompanharam com notável interesse;

Perante o exposto, resulta evidente não ter sido afectado o direito ao contraditório dos arguidos, o qual os mesmos não quiseram exercer – além da discussão dos aspectos jurídicos mais variados a respeito da validade de certos meios concretos de prova produzidos -.

Agora, explicar seja ou que for, em relação ao sucedido, na perspectiva dos arguidos requerentes – isso não só não se verificou, como os mesmos nem fizeram o mínimo esforço nesse sentido, apesar de alertados, expressamente para, querendo, fazê-lo.

A Constituição da República Portuguesa não exige mais.

Aliás, o exercício do contraditório nos termos em que foi pretendido, tanto à luz da legislação processual penal aplicável, como da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem – constituiria um verdadeiro abuso de direito e incorreria, por outro lado, na violação de outras garantias constitucionais, como o sigilo dos meios de comunicação privados (artigo 34º, 1, da C.R.P.), na medida em que permitiria aos arguidos, por exemplo, ouvir conversas sem interesse para o apuramento da verdade relativamente ao objecto do processo, mas que são da esfera íntima de outras pessoas – podendo estas nem sequer ser arguidas do processo, como sucedeu nalgumas intercepções telefónicas realizadas no âmbito dos presentes autos – por exemplo, nalgumas conversas telefónicas transcritas nos presentes autos, relativas ao alvo 27593. A liberdade de contraditório pretendida pelos arguidos seria – essa sim - ilícita à luz das garantias constitucionais, por violar, injustificadamente, o sigilo dos meios de comunicação privados. Em Portugal, o juiz de instrução criminal – que tem um papel decisório fundamental, ao garantir o respeito pelos direitos, liberdades e garantias do cidadão.

Já nos ordenamentos jurídicos estrangeiros, que motivaram alguma jurisprudência do T.E.D.H., o mesmo já não sucede. Veja-se, a título ilustrativo, a redacção do § 100 b, nº 6, do StPO alemão – que pode ser acedido em http://www.gesetze-im-internet.de/stpo/__100b.html -:

«Sind die durch die Maßnahmen erlangten Unterlagen zur Strafverfolgung nicht mehr erforderlich, so sind sie unverzüglich unter Aufsicht der Staatsanwaltschaft zu vernichten. Über die Vernichtung ist eine Niederschrift anzufertigen

Em português:

Se os registos já não são necessários para o procedimento criminal, os mesmos são eliminados, sem demora, sob supervisão do Ministério Público. Esta eliminação deve constar de auto.

Também no ordenamento jurídico alemão existe uma preocupação pela salvaguarda do sigilo das comunicações privadas. Contudo, contrariamente ao direito português, naquele ordenamento jurídico é o próprio Ministério Público que pode ordenar a eliminação dos registos de conversas telefónicas, cujo conteúdo já não interessa para o esclarecimento do objecto do procedimento criminal.

Não compete a este tribunal concretizar uma apreciação da conformidade constitucional de toda a legislação processual penal portuguesa. Contudo, sempre se dirá que os requerentes não podem exigir algo que nem a própria Constituição da República Portuguesa assegura, que é a aplicação do princípio do contraditório a todos os actos do inquérito – o que o legislador não prevê, conforme resulta implícito na parte final do artigo 32º da C.R.P. -.

Na verdade, se o princípio do contraditório fosse ilimitado, como pretendido pelos requerentes, frustrar-se-ia a garantia constitucional prevista no artigo 20º, nº5, da Constituição da República Portuguesa, na medida em quem todos os procedimentos criminais seriam nulos:

a) Porque qualquer cidadão que fosse investigado em sede de inquérito deveria ser expressamente notificado pelo Ministério, previamente, da abertura de inquérito, sob pena de nulidade do mesmo;

b) O requerimento dirigido pelo M.P. ao J.I.C., pedindo a intercepção de conversas telefónicas deveria ser sujeito a contraditório prévio dos visados;

c) Se, por exemplo, um assaltante de bancos fosse detectado por um agente policial, ao iniciar um roubo, aquele deveria ser notificado que esta testemunha estava a presenciar os factos, sob pena de não poder ser considerada válida a sua detenção, nem válido o depoimento do agente policial;

Como se vê, o princípio do contraditório levado ao extremo, sem ponderação dos interesses em causa, conduziria, forçosamente, ao caos na administração da justiça penal.

Por isso, importa ponderar, caso a caso, o modo como o princípio do contraditório pode ser exercido, sem prejudicar outras garantias constitucionais.




Como já se referiu a este respeito, uma escuta telefónica constitui, sempre, uma violação do sigilo e da privacidade das comunicações privadas. Permitir aos arguidos livre acesso a todos os registos obtidos com esse meio de obtenção de prova - mesmo aqueles que o J.I.C. já considerou não interessarem ao apuramento da verdade relativamente ao objecto do processo – constituiria, isso sim, uma violação injustificada do sigilo dos meios de comunicação privados (artigo 34º, 1, da C.R.P.) e um abuso de direito – especialmente tendo em conta a concreta ausência de impugnação dos factos, pelos arguidos, que não apresentaram qualquer contestação, nem esboçaram a menor reacção ou oposição, mesmo quando ouviram, em plena audiência de julgamento, o teor integral de uma amostragem significativa das gravações emergentes das escutas telefónicas.»


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